terça-feira, 19 de março de 2019

Lesbocídio no Brasil: casos crescem 237% em apenas 3 anos


Analisando a história do movimento LGBT no Brasil, é possível notar que alguns grupos normalmente recebem mais atenção que outros. Quando se levanta o problema da homofobia, coloca-se sob um mesmo guarda-chuva as violências sofridas por lésbicas, gays, bissexuais e até mesmo pessoas transgêneras.

Em 2018 foi lançado o primeiro dossiê sobre o lesbocídio no Brasil, uma iniciativa do grupo de pesquisa Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, formado pelo Núcleo de Inclusão Social (NIS) – projeto de extensão vinculado à UFRJ – e o coletivo Nós: dissidências feministas. 

O grupo de pesquisa foi criado em 2017, com suas atenções voltadas para uma violência bastante específica e, até então, pouco investigada em suas peculiaridades: a lesbofobia e, em especial, o lesbocídio, que é o assassinato de lésbicas tendo a discriminação/o preconceito/o ódio como uma das motivações.

Aqui, é importante esclarecer um equívoco normalmente levantado por pessoas que criticam declarações sobre assassinatos serem motivados por homofobia, lesbofobia ou transfobia, alegando questões situacionais como causadoras de assassinatos, e não o preconceito. Quando falamos em ódio ou discriminação como motivos para agressões ou homicídios, não ignoramos a causa determinada e circunstancial. 

Pensemos em uma situação hipotética: uma mulher lésbica se recusa a sair com um homem e, por este se mostrar muito insistente, ela acaba por ofendê-lo publicamente, em um bar. Sentindo-se humilhado, o homem assassina a mulher. O que pessoas contrárias à "bandeira da homofobia/lesbofobia" dirão é que o homicídio foi causado porque o indivíduo se sentiu humilhado, rebaixado, ferido e, num rompante de impulsividade, matou aquela mulher que o ofendeu. Esse tipo de argumento ignora o plano de fundo em que se insere todo o ocorrido, que é justamente a lesbofobia e o fato de que mulheres não têm o direito de dizer "não" a homens.

Infelizmente, é recorrente que lésbicas enfrentem violências em que o machismo, a misoginia e o heterossexismo apareçam interseccionados – isso quando não há, ainda, no caso de lésbicas negras, o racismo. Assim, a atração entre mulheres é tratada como fruto de alguma frustração sexual, como mero fetiche, como se duas mulheres ficassem juntas apenas para chamar a atenção de outros homens e, não raro, o que causa a indignação e a violência por parte dos agressores é o fato de que não são desejados ou de que são "rejeitados" pelas lésbicas.

O fenômeno do estupro corretivo é um dos mais cruéis ao refletirmos sobre a violência lesbofóbica, pois expõe o quanto a mulher não pode exercer sua sexualidade e dispor de seu corpo sem incluir o homem. A ideia de que o pênis – visto como o falo, símbolo de poder – deve ser a única fonte de satisfação sexual para as mulheres é compartilhada ao ponto de acreditarem que, com o estupro, ou seja, com a penetração à força, as lésbicas serão "corrigidas" e se tornarão heterossexuais.

De acordo com o Dossiê sobre lesbocídio no Brasil, em 2014 foram contabilizados 16 mortes de lésbicas no país. O documento inclui também os suicídios. A maior parte dos assassinatos foi cometida por ex-parceiros das namoradas das vítimas, dado que reforça a noção, socialmente disseminada, de que mulheres não têm o direito de rejeitar homens.

Quando a mulher termina um relacionamento e, em seguida, passa a namorar outra mulher, o sentimento de humilhação do indivíduo é somado ao da incapacidade: na cabeça desses agressores, eles não foram tão incapazes de satisfazer suas mulheres que elas passaram a se relacionar com outras mulheres. Até hoje, essa é uma interpretação recorrente e até mesmo fomentada pela sociedade.

Em 2015, houve um aumento de mais de 62% em relação ao ano anterior, sendo contabilizadas 26 mortes. Mais uma vez, os assassinatos motivados por ódio prevalecem. Em um dos casos, a vítima morta pelo ex-parceiro da namorada, à época, tinha apenas 15 anos de idade.

No ano de 2016, foram registradas 30 mortes. Desses casos, 67% compreende mulheres de até 24 anos de idade. Outro dado revelador é o de que 69% dessas mulheres eram "não-feminilizadas".

Em 2017, o registro foi de 54 mortes, uma grande escalada desde o início das pesquisas, com um aumento de mais de 80% em relação ao ano anterior. Dos casos, 32%, ou seja, 19 deles, foram de suicídio, o maior número contabilizado até então. Repetindo a tendência, 54% das mulheres eram "não-feminilizadas".

O incômodo causado por lésbicas que não se encaixam no padrão de feminilidade imposto pela sociedade é um fator que potencializa a discriminação sofrida pela mulher homossexual. A aparência "masculinizada" é lida, pelo senso comum, como um desejo de "se tornar homem" ou de ocupar o lugar do homem, de forma que essa lésbica passa a representar uma ameaça à ordem heterossexual.

Sobre essa questão, é ainda importante ressaltar que muitos homens transexuais são tidos também como lésbicas masculinizadas, tendo sua identidade negada e estando igualmente sujeitos a violências hediondas por romperem com a matriz de sexo-gênero-desejo imposta pela sociedade.

Com a ajuda de movimentos lésbicos que se uniram à iniciativa, é certo que os números contabilizados para 2018 e 2019 serão consistentemente maiores. Em entrevista para o G1, as pesquisadoras do grupo afirmaram que, até agosto de 2018, haviam sido registrados 110 casos.

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Para conhecer mais sobre o projeto:
Dossiê sobre lesbocídio no Brasil (relatório completo em ".pdf")
Dossiê sobre 'lesbocídio' aponta que SP é o estado que mais registra morte de lésbicas
Entrevista para o site M de Mulher

quarta-feira, 13 de março de 2019

Marielle, milícias, Rio de Janeiro e os Bolsonaros: o que tem a ver? - Parte 1

Da mesma forma que não é fácil escrever este texto, deixo avisado que ele não será fácil de ler.
Na postagem anterior, eu mencionei uma política da exaustão em curso e, agora, vou tentar articular sobre como isso tem funcionado para pessoas que vêm acompanhando a realidade política do Brasil e, ainda, estabelecer algumas ligações com as últimas notícias. É difícil dar conta de todas as informações sem ter uma pane mental.

Em primeiro lugar, é preciso falar, mais uma vez, da ideia de "estado de exceção". Já em 2003, Giorgio Agamben apontava sobre como ele havia se tornado regra, retomando uma das teses de Walter Benjamin (1942) sobre o conceito de História, em que aborda a "tradição dos oprimidos". Certamente, a reflexão benjaminiana sofreu influência direta do espaço e do tempo em que estava vivendo: a Segunda Guerra Mundial.

Nas décadas posteriores talvez fosse mais difícil enxergar essa exceção como regra, mas muitos de nós a percebem claramente agora, nesta contemporaneidade que vai ganhando moldes cada vez mais assustadores.

Um fato que pode ajudar a reforçar essa constatação, aqui no Brasil, é de que o livro Elite da Tropa, de autoria de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel, teve sua primeira edição lançada em 2005. Nele, há um importante registro do governo paralelo do Rio de Janeiro exercido pelas milícias.

O que estamos descobrindo, enfim, é que de fato as milícias ocupam posições importantes e têm ligações com políticos diversos. Se pesquisarmos mais a fundo, veremos que se trata de uma espécie de prolongamento do regime militar no país, quando a corrupção não era conhecida do público, mas acontecia com o envolvimento de policiais e militares. Sobre este tema, vale a pena conferir o livro Os porões da contravenção, escrito por Aloy Jupiara e Chico Otávio.

Em segundo lugar, não podemos nos esquecer de que ocupa a presidência um político de carreira. Eleito pela primeira vez em 1988 para o cargo de vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão, hoje extinto, candidatou-se a deputado federal logo em 1990. Foram 6 reeleições, perfazendo 28 anos, até sua eleição como presidente.

O discurso político de Jair Bolsonaro sempre teve como ponto central a defesa do militarismo e da belicosidade. Para além de declarações favoráveis ao regime militar e às práticas governamentais da referida época, o presidente é fã assumido de Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador condenado em 2008 pela 23ª Vara Cível de São Paulo.

Em 2003, Jair Bolsonaro chegou a defender grupos de extermínio que atuavam na Bahia, em discurso na Câmara dos Deputados. A bem da verdade, ele não foi o único político a elogiar a atuação de grupos paralelos na ausência de segurança garantida pelo Estado. Foi, inclusive, essa visão positiva das milícias como protetoras do "cidadão de bem" refém de criminosos um dos fatores que culminaram na eleição do atual presidente.

No mesmo ano de 2003, Flávio Bolsonaro, então deputado estadual no Rio de Janeiro, concedeu a Medalha Tiradentes, considerada a maior honraria do estado, a Adriano da Nóbrega, ex-capitão do BOPE. No ano seguinte, foi prestada uma homenagem ao major Ronald Paulo Alves Pereira, também por Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Ambos são parte da milícia que atua no Rio de Janeiro.

Em 2005, Jair Bolsonaro, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, pediu ajuda de Denise Frossard, então deputada federal e ex-juíza criminal, para reverter a condenação de Adriano da Nóbrega, condenado a 19 anos e 6 meses de prisão pela morte de Leandro dos Santos Silva. Leandro, guardador de carros, foi assassinado na favela Parada de Lucas, na Zona Norte do Rio. Segundo seus familiares, o jovem havia denunciado Policiais Militares que praticavam extorsão a moradores da comunidade.

Em 2007, em discurso, o deputado assinalou que as milícias têm uma atuação positiva, que causaria medo em defensores dos Direitos Humanos. Páginas de notícias chegaram a apontar a pretensão, pelo parlamentar, de elaborar um Projeto de Lei que legalizasse a existência da "polícia mineira" – gíria usada para designar as milícias. Em 2008, na CPI das Milícias – presidida pelo também deputado estadual Marcelo Freixo –, Flávio voltou a defender os grupos, posicionando-se contra a CPI e alegando que as organizações seriam uma consequência do descaso estatal.

Neste primeiro apanhado de informações, notamos que 1) existe uma tradição miliciana no Rio de Janeiro; 2) o clã Bolsonaro, que nunca escondeu seu posicionamento favorável ao uso de repressão e violência como métodos oficiais, defende há tempos a atuação de milícias como método de segurança paliativo e 3) com a eleição do atual presidente, cria-se um clima em que a atuação das milícias é não apenas facilitada, mas aplaudida.

quarta-feira, 6 de março de 2019

Bolsonaro e o governo pelos excessos


Os métodos de governo de Jair Bolsonaro não se diferem daqueles pelos quais ele venceu a eleição: divulgação de informações em excesso, sem preocupação com a veracidade e, preferencialmente, em tom alarmista. Os "inimigos" são vencidos pela exaustão, cansados de explicar o óbvio e de combater um exército de indivíduos que não se preocupam em demonstrar racionalidade mínima.

Nem o mais criativo dos escritores de ficção imaginaria uma distopia em que o presidente do país, usando o Twitter como meio de comunicação oficial, divulga, entre supostos feitos do governo, vídeos escatológicos e notícias falsas diversas. Narrativas que soam absurdas, como a da existência de um "kit gay" e de mamadeiras eróticas que seriam distribuídas nas escolas, teorias da conspiração, como a do "marxismo cultural" e da "ideologia de gênero", agora fazem parte do repertório de um chefe de Estado que ignora por completo a lei atrelada ao exercício do cargo.

Conforme a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, o ato de "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo" é um crime contra a probidade na administração, previsto no Art. 9º.

A publicação, pelo presidente, de um vídeo em que ocorre pornografia explícita, sem qualquer aviso ou indicação, foi feita com o intuito de denunciar o Carnaval como um período do ano em que atentados ao pudor são recorrentes. Contudo, mais uma vez, Bolsonaro se utilizou de uma exceção para tentar representar, de maneira distorcida, a regra.

Não defendo que um ato tão explícito seja feito na rua, à luz do dia, numa ocasião em que é possível que crianças o vejam. Mesmo que se trate de um protesto ou de uma provocação (afinal, o vídeo foi compartilhado sem qualquer informação sobre quando e onde foi gravado), o uso do sexo para uma performance, seja ela espontânea ou planejada, não deve acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar. Ainda mais por estarmos vivendo em um período, no Brasil, em que qualquer manifestação do tipo pode ser usada contra nós (minorias sociais em geral e, no caso, mais especificamente contra LGBT+) a fim de que nossa luta se torne ainda mais questionada e deslegitimada.

Para além da falta de contextualização do vídeo, o que torna tudo mais grave é o modo como o presidente Bolsonaro não demonstra pudor algum ao compartilhar essas imagens. Além disso, por ser possível identificar as pessoas envolvidas no ato, é de se esperar até mesmo que ocorra o linchamento desses dois indivíduos, não apenas virtualmente – isso sem falar naquelas pessoas que, eventualmente, possam ser confundidas com eles, tornando-se alvo de violências também.

A eliminação dos indesejáveis é uma política típica do Estado de exceção. Com as manifestações de descontentamento com Jair Bolsonaro em múltiplos blocos por todo o país, o presidente se deu conta de que não conseguirá eliminar todos os "inimigos". Assim, seu desejo passa a ser o de impedir que aconteça uma festa em que a politização e a sátira a políticos como ele é recorrente. E, convenhamos, para os moralistas de plantão, acabar com o Carnaval seria orgásmico.