sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A perseguição a LGBTs no regime militar

[Este post reúne dois textos meus que tratam do tema. Tenho a intenção de fazer uma espécie de dossiê futuramente, mas é um trabalho a ser completado a longo prazo. Decidi por colocá-los aqui para facilitar a quem eventualmente faça uma pesquisa e precise consultar os dados.]

Operação Tarântula: A caça às travestis no Brasil durante os anos de 1970 e 80

O regime militar foi especialmente duro com LGBTs. Após a abertura política, policiais continuaram a "caçar" travestis com o apoio da sociedade.

As travestis definitivamente fazem parte do imaginário cultural brasileiro. Estão nas ruas, na televisão e formam um grupo social único de complexa definição. Apesar de toda sua visibilidade, isso não significa que são aceitas socialmente - muito pelo contrário, representam um dos segmentos mais discriminados e marginalizados da comunidade LGBTTT.
A expressão de gênero feminina não confere unanimidade às identidades de gênero adotadas pelas travestis: algumas se identificam como mulheres; outras, como um terceiro gênero entre o masculino e o feminino; há ainda aquelas que se dizem homens homossexuais (talvez reproduzindo um senso comum ainda veiculado pelos meios de comunicação).
De fato, historicamente, algumas travestis adotaram uma aparência feminina para conquistar mais clientes no mercado da prostituição, que por vezes se apresenta como único meio de subsistência para homossexuais efeminados nascidos em famílias pobres e que não puderam pagar por uma educação de qualidade. Mas há também as mulheres trans que não têm condições de pagar pelo processo de transição adequado e recorrem a meios mais baratos para conquistar o corpo que tanto desejam. Há até mesmo aquelas mulheres que não almejam a cirurgia de redesignação genital e abraçam a ambiguidade de gênero que acaba por caracterizar a travesti que figura na mentalidade popular.
No Brasil governado por militares, não é de se estranhar que essas pessoas tenham se tornado alvo de perseguição juntamente à comunidade homossexual (como foi o caso também dos negros, associados à "vadiagem" e "malandragem"). Apesar de muitas, à época, trabalharem na indústria do entretenimento como transformistas, a maioria absoluta recorria à prostituição para se manter e, por esse motivo, travestis eram automaticamente consideradas criminosas.
Segundo conta o livro Ditadura e homossexualidades, organizado por James N. Green e Renan Quinalha, no início dos anos 1970 a polícia civil passou a fazer rondas para reprimir a criminalidade nas grandes cidades, por meio de blitz. Assim, apreendiam LGBTs nas ruas sob a justificativa de averiguação (naquela época, havia uma lei contra a "vadiagem", que era usada como motivação para deter essas pessoas).
A partir de 1976, a polícia civil de São Paulo passou a estudar e a combater travestis. O delegado Guido Fonseca, responsável por uma pesquisa em criminologia envolvendo essas pessoas que chamava de "pervertidos" determinou, então, que toda travesti devia ser levada à delegacia para que fosse fichada e tivesse sua foto tirada "para que os juízes possam avaliar seu grau de periculosidade".
Além da repressão oficial, as décadas de 1970 e 80 testemunharam uma onda de assassinatos brutais de pessoas LGBT, algumas delas bastante conhecidas, como o diretor de teatro Luíz Antônio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso. Em 1987, a polícia deu início à Operação Tarântula, com o objetivo principal de prender travestis que se prostituíam nas ruas de São Paulo. Apesar de a operação ter sido suspensa pouco tempo depois, travestis passaram a ser assassinadas misteriosamente, a tiros.
Além da suspeita que recaiu sobre policiais, houve desconfiança da ação de grupos anti-gays que se manifestavam abertamente e, não raro, a própria população era favorável à matança como uma forma de "higienização" das ruas da cidade. Declarações mostradas no documentário Temporada de caça, dirigido e produzido por Rita Moreira (veja abaixo), dão a dimensão de como o ódio generalizado predominava na sociedade e, de certa forma, sancionava uma verdadeira caçada às minorias sexuais.
Conhecer esse período tenebroso da história brasileira é importante para que fiquemos atentos a novas movimentações semelhantes de ataques à comunidade LGBT - que podem começar como uma simples defesa à liberdade de expressão e ao direito de "não gostar de homossexuais". A linha entre a livre manifestação de um ponto de vista preconceituoso e a ação pode ser mais tênue do que imaginamos.

*Texto originalmente publicado em: Blasting News

Durante o regime militar, LGBTs sofriam maior perseguição

Homossexuais, travestis e mulheres trans sofriam com tortura e assédio sexual por parte de oficiais.

As narrativas que emergem desde o fim do Regime Militar, em sua maioria, dizem respeito a ativistas políticos e intelectuais que criticavam a ditadura, pouco se falando sobre a situação vivida por minorias sociais como negros, pessoas LGBT e prostitutas, que habitavam uma espécie de submundo urbano.
Em 1969, por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores instalou a Comissão de Investigação Sumária, visando à perseguição de homossexuais, alcoólatras e pessoas consideradas emocionalmente instável dentro do Itamaraty. Ao todo, 44 indivíduos foram cassados a partir da declaração do AI-5, porque afrontavam os valores do regime em suas condutas privadas. Entre os diplomatas obrigados a pedirem demissão, 15 o fizeram em função de “prática de homossexualismo” e “incontinência pública escandalosa”, e outros 10 conduzidos a fazer exames médicos e psiquiátricos para se comprovar as suspeitas que sobre eles recaíam, justificando seu afastamento.
A ideia de repressão ao crime levou à criação de diversas operações policiais voltadas para a abordagem de indivíduos “suspeitos” a qualquer hora do dia. As rondas que, no auge do regime militar, dedicavam-se a combater as guerrilhas, voltaram-se para a realização de blitz que tinham, entre seus alvos preferenciais, negros, pobres e LGBTs com frequência detidos para averiguação conforme a interpretação da lei por cada investigador.
Nos anos de 1976 e 1977, a polícia civil desenvolveu um estudo de criminologia tendo as travestis como objeto de pesquisa, sob comando do delegado Guido Fonseca, registrando 460 delas, das quais 398 chegaram a ser levadas para interrogatório. Cada travesti fichada precisava assinar um termo no qual constavam profissão, ganho mensal, gastos com hormônios e aluguel, entre outras informações. As tentativas de implantar políticas de higienização na cidade se prolongaram também pela década de 1980, contando com o apoio de grande parte da população, a exemplo das Operações Cidade, Limpeza e Tarântula.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade conta que esse processo de higienização urbana resultou em pelo menos 1,5 mil prisões somente na cidade de São Paulo. As travestis eram os alvos principais de espancamentos, humilhações e extorsões, sendo com frequência obrigadas a fazer sexo com policiais em troca de liberdade.
Em relato durante o 2º Workshop Regional da Rede Trans Brasil, que aconteceu em Uberlândia no dia 22 de outubro, a mineira Sissy Kelly, hoje com 59 anos, contou sobre o medo constante de viver no regime. Não raro, para fugir, as travestis tinham de subir nos telhados das casas e ainda revelou que, às vezes, os policiais que as espancavam eram os mesmos que procuravam por seus serviços sexuais. Cada cidade tinha suas práticas e formas de humilhar as presas, que eram obrigadas a lavar os banheiros das delegacias, fazer sessões de sexo oral nos policiais, entre outros absurdos. Segundo Kelly, em Salvador, cabia a elas lavar os cadáveres recolhidos.
Marcelly Malta, de 65 anos, natural de Porto Alegre, também compareceu ao evento em Uberlândia para narrar suas memórias. Ela conta que mesmo trabalhando formalmente e saindo à rua com sua carteira de trabalho para mostrar aos oficiais, era apreendida e acusada de vadiagem, tendo sua carteira rasgada. Relata ainda que as colegas negras apanhavam ainda mais e era comum que simplesmente desaparecessem depois de abordadas por policiais.
A Operação Cidade foi deflagrada em 1980, durante o governo de Paulo Maluff, na cidade de São Paulo, sob o comando do delegado José Wilson Richetti, sob a justificativa de prender assaltantes e traficantes de drogas. No entanto, conforme noticiado pelos jornais à época, somente no primeiro dia da operação houve 152 prisões, sendo a maioria de prostitutas, homossexuais e travestis.
Se desejamos caminhar para uma sociedade mais tolerante, é de extrema importância que estejamos atentos a histórias de perseguição e também de omissão por parte de órgãos oficiais para que elas não se repitam.
*Texto originalmente publicado em: Blasting News
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