A dificuldade de determinar minha identidade de gênero - a qual é uma exigência social - levou a uma série de questões e dilemas sobre os quais até hoje não sou capaz de responder. Não me vejo como uma pessoa cisgênero porque não sou uma mulher - pelo menos não estou de acordo com essa designação e com nada do que é colocado sob o conceito de "mulher" e, pensando na clássica frase de Simone de Beauvoir, eu falhei em me tornar mulher. Porém, não estar de acordo com o gênero que me foi designado também não significa que eu me identifique com o gênero masculino, aquele que ocupa o outro espectro do binário.
Pensando na fluidez, no trânsito, no eterno processo de negociação de minha identidade de gênero e dos papéis que assumo, no fato de usar meu corpo como um lugar de experimentação sem assumir características definitivas, depois de uma vida procurando compreender em que lugar me encontro e diante da pressão, por parte da sociedade, por assumir uma identidade, assumo, então, uma identidade não-binária.
Em primeiro lugar, não ter uma identidade cisgênero, para mim, não é o mesmo que automaticamente ter uma identidade transgênero. Eu não posso, em absoluto, falar pela comunidade trans como "representante". Se existem pessoas que me consideram como alguém trans, isso parte de uma noção bastante complexa que está relacionada com a história e a evolução dos Estudos Queer e de movimentos pela diversidade sexual e de gênero que ainda lutam por estabelecer consensos que, na verdade, têm mais a ver com uma obsessão humana pela classificação como recurso didático.
Tendo explicado meu lugar de fala, pretendo entrar na discussão sobre desconstruções de gênero e como, até para algo que se pretende questionador, existem pessoas capazes de incorporar um estereótipo na busca por assumir um posicionamento que lhes parece "legal" ou "moderno".
Minha primeira atitude, diante dessa caricatura, foi a de unir imagem e texto, contextualizando o painel como um todo. Temos, aqui, um indivíduo que se identifica como trans ("eu também sou trans"; "eu não sou homem, meu gênero é...") e que parece tomar o cuidado de não se colocar no lugar de mulheres. Contudo, essa aparente consciência sobre seu "lugar de fala" como "não-mulher" não parece existir quando o posicionamento diz respeito às pessoas trans. Ou seja, esse indivíduo não vê problema em falar por pessoas trans.
Esse sujeito também não se considera apropriador da cultura negra porque seu "avô era negro", mas não leva em conta que sua pele clara faz com que ele não possa falar por pessoas negras e que deve tomar cuidado ao colocar sua ancestralidade em pauta.
Outra palavra, ali, indica um comportamento machista e opressor: "gaslighting". O indivíduo que pratica o gaslighting é aquele que distorce ou omite informações para desmerecer a fala do outro. É, portanto, o sujeito que acusa uma mulher negra de ser agressiva quando ela lhe chama a atenção para a apropriação cultural, por exemplo, ou que acusa travestis de serem exageradas e histéricas, prejudicando a aceitação de pessoas trans, ou ainda que se sente atacado por feministas quando elas problematizam sua identidade de gênero.
Levando em conta todo o conjunto que envolve atitude, discurso, identificação e posicionamento por conveniência, a princípio, vi na imagem a reprodução de um estereótipo que tem se reafirmado recentemente. Trata-se da pessoa que promove uma banalização da desconstrução ao assumir, forçosamente, uma superfície "destruidora de gêneros" que não passa disso: de uma superfície. Trata-se do sujeito que nunca passou por experiências de opressão, muito menos pelo sofrimento psíquico que vem com a percepção de uma identidade de gênero destoante e com a busca pela auto-aceitação de grupos que, historicamente, são vistos com tamanho desprezo que internalizam a depreciação sem ter o direito de existir como sujeitos.
Mas há um outro ponto de vista que tira essa caricatura da qualidade de uma crítica válida para a da de uma abordagem preconceituosa que invalida a multiplicidade das expressões trans. Afinal, existem mulheres trans e pessoas não binárias que, de alguma forma, encaixam-se na aparência física do sujeito ali desenhado. A diferença é que a postura dessas pessoas não parte de uma "atuação" artificial e superficial. Há mulheres e homens trans que não se adequam ao que a sociedade espera de alguém transgênero, simplesmente porque, como qualquer outra categoria, nela está comportada uma grande diversidade.
A noção de uma pessoa trans "de verdade" está completamente baseada na medicalização da condição transgênero, que determina um "diagnóstico" pautado na infelicidade total com o próprio corpo e na necessidade de uma transição tipificada, que envolve hormonização, cirurgias e a adequação total ao gênero com o qual a pessoa se identifica.
O grande problema é que grande parte das pessoas trans não se encaixa nessas regras médicas apontadoras de uma disforia, responsáveis pela forma como enxergamos, até hoje, a transgeneridade como condição patológica. Assim, espera-se que transgêneros sigam uma norma, a qual os direcionaria a uma coerência corporal a fim de que se aproximem do ideal cisgênero.
Que homens se importem em questionar as normas de gênero e em desconstruir suas próprias masculinidades é algo positivo, mas até que ponto essa é só uma atitude que não necessariamente configura uma identidade? Em que medida se dizer trans para negar sua masculinidade pode prejudicar um movimento legítimo e múltiplo que vem lutando contra o controle exercido pelas instituições sobre seus próprios corpos? Como saber se esses indivíduos estão assumindo o protagonismo que deve ser dado a outras pessoas simplesmente por uma vontade de ser diferente?
O limite entre representação e desinformação baseada em percepções equivocadas ou generalistas é muito tênue, daí a necessidade de sempre retomarmos o debate sobre o "lugar de fala". A quem cabe a crítica ao estereótipo de um "destruidor dos gêneros"? Certamente, não às pessoas cisgênero, privilegiadas por seus corpos "lógicos" e "coerentes".
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