Não podemos dizer, especificamente, que existiram índios homossexuais na
História do Brasil porque os índios não conheciam, muito menos usavam o
conceito de “homossexual”, identidade que apenas foi cunhada no século XIX.
Isso não significa, contudo, que não existia a prática do sexo homossexual nas
tribos, como é o caso também de identidades de gênero para além do binômio
homem-mulher ao qual a sociedade ocidental dita civilizada se acostumou.
Na verdade, há um número considerável de evidências de que a
homossexualidade era uma prática socialmente aceita entre índios de diversas
tribos. Além do mais, deve-se ter em mente que comportamentos e identidades não-heterossexuais
entre índios não podem ser analisadas unicamente a partir de nossas concepções
heteronormativas, uma vez que se tratam de sociedades diferentes, com
experiências, vivências, crenças, simbologias, significados, interpretações, pontos
de vista, rituais e pudores diferentes.
É notável a abundância de termos usados em tribos indígenas
por toda a América para se referir a indivíduos que, de alguma forma, poderiam
hoje ser classificados como LGBTTIQ a partir de nossa perspectiva.
À época da colonização da América Latina, no século XVI,
viajantes europeus relataram a presença de índios e índias sodomitas no Novo
Mundo (“sodomia” era a palavra usada para se referir a qualquer prática sexual “não-natural”,
incluindo homoerotismo, sexo anal, oral etc.). Esses atos eram vistos pelos
colonizadores como pecaminosos e selvagens, e junto com a catequização dos
nativos vieram também as tentativas de apagamento do histórico dessas práticas.
Em sua extensa pesquisa, o antropólogo Dr. Luiz Mott menciona
como até mesmo grandes civilizações, dentre elas os Maias e os Astecas,
permitiam determinadas práticas e comportamentos, como o homossexo e o
travestimento entre homens (apesar de condenarem outras).
A relação entre a prática homossexual e o xamanismo também
esteve presente desde tempos imemoriais. Muitos já ouviram falar dos two-spirit norte-americanos, nativos que
transitavam entre os gêneros e que, segundo a crença, eram detentores de
grandes poderes e dons, justamente por carregarem ambos os espíritos masculino
e feminino. A existência dessas pessoas foi documentada em cerca de 155 tribos
espalhadas por toda a América do Norte.
No Brasil, a diversidade dos papéis de gênero também existiu,
a exemplo dos tibira (que seriam os índios
“gays”) e das çacoaimbeguira (as índias “lésbicas”), entre os Tupinambá. As çacoaimbeguira foram descritas como
índias extremamente masculinizadas, que exerciam funções usualmente delegadas
aos homens, vivendo com uma mulher que as servia como se fossem homens, além de
exibirem os tradicionais cortes de cabelo masculinos.
Entre os índios Guaicuru e Xamicos, existiam os cudinhos, que adotavam vestes e adornos
femininos e serviam a seus maridos como se fossem mulheres.
Entre os Kadiwéu, o hábito da pintura corporal é reconhecido como uma arte feminina. Os complexos padrões da tribo são pintados pelas mulheres mais velhas e pelos kudína, homens efeminados que incorporavam todos os atributos da mulher e assumiam papéis femininos naquela sociedade.
Segundo Luiz Mott (1994), em tempos de Inquisição, foi
justamente a maior liberdade sexual e a nudez entre índios e entre escravos (a
questão da “homossexualidade” nas tribos africanas merece um texto à parte),
entre outros fatores, que possibilitaram aos sodomitas europeus um espaço
privilegiado na colônia para suas práticas homoeróticas.
Em dias de fundamentalismo e conservadorismo como estamos vivendo, alguns podem tentar justificar a não aceitação da homossexualidade usando como justificativa que não há histórias de "índios homossexuais", sendo eles o supra-sumo da moralidade e da inocência por conta de sua condição como "selvagens". De fato, não houve "índio homossexual", mas houve homossexualidade entre os índios, desde sempre.
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Sugestões de leitura:
- "Etno-história da homossexualidade na América Latina", Luiz Mott
- "Proibido ter prazer", Luiz Mott
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