terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A banalidade do mal e o vazio de pensamento


Mesmo não conhecendo a obra de Hannah Arendt, é provável que todos estamos mais ou menos familiarizados com o termo “banalidade do mal”. Essa expressão foi cunhada pela filósofa em seu livro Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963 com base nos relatos de Arendt para o jornal The New Yorker, a respeito do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann.

Eichmann teria sido responsável pela eficiente logística que levou milhares de pessoas ao extermínio durante a 2ª Guerra Mundial, tendo organizado o sistema de identificação e transporte dos indivíduos aos campos de concentração espalhados pela Alemanha.

Julgado em 1961, em Israel, por crimes contra a Humanidade, genocídio de judeus e por pertencer a uma organização com fins criminosos, Eichmann se declarou inocente, mas foi condenado por todas as acusações e enforcado no ano seguinte.

A análise de Arendt daquele indivíduo revela que ele não apresentava nenhum histórico de violência ou mesmo antissemitismo, além de não mostrar características de ser alguém doente ou com transtornos de personalidade.

Como oficial do Partido Nazista, Eichmann agiu segundo o que acreditava ser seu dever, cumprindo ordens superiores. Movido pelo desejo de ser bem-sucedido em sua carreira profissional, ele simplesmente cumpria as ordens sem questioná-las, com o devido zelo e eficiência. Para ele, não havia a questão moral de estar cometendo crimes, uma vez que naquele Estado de exceção o extermínio fazia parte das regras – um Estado no qual o “mal” era algo banal.

Assim, para a filósofa, o mal não é uma categoria ontológica, natural, com a qual alguém nasce ou que faça parte da essência de um sujeito; é, antes, algo político e histórico, que se manifesta onde encontra espaço institucional para isso e é produzido pelos próprios seres humanos. No tempo e espaço em que o mal é permitido e sancionado, a violência se torna algo trivial, correspondendo ao “vazio de pensamento” (outra expressão cunhada por Arendt na obra). Em suma, não se pensa sobre o ato violento cometido, por ser esse tipo de comportamento banal.

Atendo-nos ao Brasil, podemos fazer analogias diversas com situações nas quais a “banalidade do mal” se faz presente, fruto de vazios do pensamento provocados por uma cultura em que a violência é apresentada como solução para a violência, uma vez que essa reação não requer abertura para o outro – trata-se da solução ideal oferecida às personalidades autoritárias.

Temos, por exemplo, na Polícia, um caso muito semelhante ao dos oficiais nazistas: agem apenas cumprindo ordens. Nas ocupações das escolas por estudantes em São Paulo, a Polícia Militar foi filmada e fotografada agredindo adolescentes e agindo com a mesma truculência da qual lança mão para apreender um criminoso. Cumpriu com seu trabalho dentro de uma instituição que permite, sanciona e até estimula a violência

Quando trataram os estudantes lançando mão de abuso de poder e de força física, é bem provável que não estivessem se preocupando com o bem estar daqueles jovens e que acreditassem estar fazendo seu trabalho com eficiência. Não há espaço para subjetividade quando se cumprem ordens - nem para o senso lógico de que aqueles alunos eram fisicamente menos fortes que os policiais.




Em uma sociedade na qual o próprio Estado é violento, o governo é violento e os líderes apresentam discursos que estimulam a violência, é de se esperar que a população seja também violenta.

A escolha de um (ou mais) inimigos seria fator a justificar a violência, como se apenas o espancamento, o linchamento, o extermínio dos grupos considerados inimigos solucionassem o problema da desigualdade – ou melhor, da existência do outro. As pessoas se voltam para o inimigo em surtos de histeria coletiva como os que presenciamos nas últimas manifestações pró-impeachment quando os chamados “cidadãos de bem” se deparam com indivíduos os quais eles não enxergam como sujeitos, mas como males que precisam ser eliminados da sociedade – leia-se, aqueles que não pertencem aos grupos dominantes.


Podemos até dizer que o “vazio de pensamento” demonstrado por essas pessoas que agem dentro do grupo é voluntário, uma vez que não se deseja o esclarecimento – como já fui obrigada a ouvir diversas vezes, quando tentava explicar racionalmente algum movimento social: “não quero saber de Marx”; “o que vem de Marx eu nem leio”; “saber disto não me interessa”. 

Há uma vontade de se permanecer ignorante, de não se abrir para explicações e reflexões que, em outro contexto, seriam óbvias. A principal atitude tomada por esses “cidadãos de bem” refletem, na verdade, um ataque pronto, sem ter havido, antes, uma ação à qual seja preciso revidar. Afinal, a possibilidade de se abrirem para qualquer racionalização diferente daquela já pronta em suas mentes traz consigo a ameaça da desconstrução.

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