A tentativa de cercear a liberdade docente, por meio da restrição de como professores e profissionais da educação devem agir, vem acontecendo já há algum tempo e, no dia 17 de julho, o Senado lançou uma consulta popular através do portal e-Cidadania a respeito do Projeto de Lei 193, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), integrante da bancada evangélica, que inclui o programa que ficou conhecido como "Escola Sem Partido" na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Há ainda um Projeto de Lei tramitando na Câmara, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF), o PL 867/2015.
Em nota técnica, encaminha na sexta-feira, 22 de julho, ao Congresso Nacional, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF), aponta a inconstitucionalidade do Projeto 867/2015.
Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão e redatora da nota, escreveu que o projeto "nasce marcado pela inconstitucionalidade", justificando que o artigo 205 da Constituição Federal coloca, como objetivo primeiro da educação, o pleno desenvolvimento das pessoas e a sua capacitação para o exercício da cidadania - o que envolveria a abordagem de temas socioculturais, do respeito às diferenças e o estímulo à participação ativa na promoção de melhoras para a sociedade de maneira geral. "Essa ordem de ideias não é fortuita. Ela se insere na virada paradigmática produzida pela Constituição de 1988, de que a atuação do Estado pauta-se por uma concepção plural da sociedade nacional. Apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, e esta só é possível se se assegura a cada qual sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida", afirmou Duprat.
A nota argumenta ainda que o Escola sem Partido coloca o professor "sob constante vigilância, principalmente para evitar que afronte as convicções morais dos pais", além de confundir a educação escolar com aquela que é dada pelos pais, misturando o público e o privado de forma danosa.
À primeira vista, o projeto dá a impressão de se tratar de uma busca por melhoras no sistema educacional, de forma a impedir uma doutrinação ideológica em sala de aula, algo bastante válido se encararmos a proposta isoladamente. Contudo, o texto contém uma série de incoerências que ficam ainda mais evidentes quando levamos em conta o posicionamento dos defensores da chamada "Escola Sem Partido".
Um grande problema, que o movimento em questão ignora, está no fato de muitos políticos o defenderem justamente para fazer valer seu próprio viés ideológico.
De acordo com o PL 867/2015, ficaria estabelecido que:
Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:A noção de neutralidade é, de fato, interessante, no entanto, o texto ignora completamente que algumas discussões ideológicas são necessárias para a formação crítica do pensamento e que, para fomentar o debate e estimular o aluno a formar sua própria opinião acerca de um assunto é preciso ensinar a respeito de correntes ideológicas e crenças - afinal, a única maneira de o indivíduo se posicionar contra uma linha de pensamento é conhecendo o que é pregado por ela.
I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;
III - liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;
IV - liberdade de crença;
V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.
Ademais, a abordagem de questões importantes como a desigualdade de gêneros, a homofobia, o racismo e o que leva às discrepâncias entre classes sociais e econômicas tem sido encarada como "doutrinação" a partir de uma distorção deliberada dos discursos de educadores e estudiosos desses temas.
Ainda conforme o projeto, o professor:
I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária;Ora, se ao professor cabe apresentar "as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes", é necessário que ele aborde a necessidade, por exemplo, de trabalhadores participarem de manifestações e procurarem sindicatos para que tenham seus direitos garantidos.
II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
IV - ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;
V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;
VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
É perigoso também que não haja uma delimitação precisa, no projeto, do limite entre expressão de opiniões e a tal doutrinação, o que pode levar um professor a ser legalmente processado simplesmente por divergir de um ponto de vista e expor seus argumentos em sala de aula, o que é bastante diferente de apresentar fatos de maneira parcial.
O projeto trata ainda do respeito às convicções dos pais dos alunos sem, contudo, estabelecer parâmetros que reconheçam a capacidade do educador a partir de sua formação. Para que os pais se oponham à ação do professor, eles precisam compreender o processo pedagógico e as motivações, já explicadas, do motivo de certos assuntos serem abordados em sala de aula.
Porém, o que temos visto com bastante frequência são pais que, sem acompanharem a vida escolar dos filhos, apenas procuram intervir quando lhes parece conveniente - e, sabemos, para os pais é bastante conveniente que seus próprios filhos não questionem suas crenças, algo que os jovens são capazes de fazer independentemente da função do professor, que acaba levando a "culpa" por dar ao filho um instrumento poderoso que é a argumentação.
Em maio, o MEC já havia se posicionado contra essa movimentação que tem acontecido para se controlar o ensino, mas uma reunião recente entre o presidente interino Michel Temer e uma comitiva de pastores levou o governante a se comprometer com a revisão da atuação do MEC, mostrando-se favorável a essa grupo que procura basear a educação em seus preceitos religiosos e moralistas.
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