(tirinha de André Dahmer)
Moro num país tropical, ungido pelo Senhor, bonito por
natureza, mas poluído e desmatado, enfrentando plena crise hídrica. Em fevereiro, o carnaval vem com mais casos
de abuso sexual, muitos não relatados. Vivo num país em que não confiamos nos
governantes e temos medo da polícia.
Não temos quem nos proteja da violência. Desconfiamos da
honestidade. Não entendemos de economia, nem de política. Nossa ignorância,
muitas vezes, é voluntária – ou paga. Só enxergamos a corrupção e o erro do
outro. Aqui ganha quem grita mais. Mas ainda temos heróis, na TV.
A palavra de ordem é “intolerância”. Não se tolera o
diferente porque é ele o culpado de todos os problemas. É ele que incomoda, a
minoria.
Ainda não chegamos a um acordo sobre o que seria a liberdade
de expressão. Apenas sabemos que é seguro vestir a máscara da opinião, ainda que ela represente uma violação dos direitos do outro.
Na madrugada de 20 de junho de 2015, Laura Vermont, de 18
anos, foi agredida por cinco homens. Estava a pé, depois de ter sido colocada
para fora de um carro – segundo relatos, ela e outra amiga haviam brigado com o
casal que estava no carro e Laura puxou um estilete. Podemos dizer, sim, que
Laura não era inocente. Deve ter perdido sua inocência muito cedo, essa é a
verdade.
O que aconteceu na Avenida Nordestina, zona leste de São
Paulo, não teve relação com a briga no carro. Não sabemos se foi Laura quem
primeiro deu atenção aos sujeitos que a espancaram. Ou se apenas respondeu a
provocações.
Como a maior parte das travestis, Laura se prostituía. Era
mais uma que a sociedade deixara sem saída, sem escolhas. Aprendeu a sobreviver
e a se defender como podia. Afinal, soube desde cedo que não teria seus
direitos garantidos pelo Estado, e que não teria a proteção policial nem a
segurança a qual sujeitos têm direito. Ela não era sujeito, era abjeto, habitava
uma zona de exclusão que a sociedade se recusa a legitimar e a abrigar.
Não à toa, Laura foi assassinada por Policiais Militares.
Estes podem exercer a violência de forma legalizada e têm o aplauso de uma multidão
toda vez que rasgam as páginas da Constituição Federal em que é assegurado o
direito à vida; são congratulados sempre que ignoram a existência de uma
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A ação tão exemplar e eficiente da PM, inclusive, inspira as
pessoas de bem, corretas, a agirem para ajudar no combate ao crime. Agora,
deixam marginais amarrados a postes como uma forma de ajudar à justiça. Aliás,
não somente ajudam, como também substituem o papel do judiciário; julgam por si
mesmos. Pisam em Mateus 7:1, mas por uma boa causa.
A parcialidade do povo se revela justamente na ideia
propagada de que apenas os “cidadãos de bem” têm direito à dignidade. Prezam
pelo seu interesse sem querer admitir seus privilégios. O cidadão de bem não
quer ouvir argumentos, não precisa deles, pois tem suas frases prontas,
cunhadas para a repetição; é assim que ganha discussões no grito. Para o cidadão de bem, "bandido bom é bandido morto", porque faltaram "umas boas porradas quando era moleque" e agora que virou ladrão, não tem mais o que fazer. Para o cidadão de bem, "todo traveco só quer caçar confusão", porque "se tivesse apanhado quando era criança não tinha virado viadinho".
Usando as
palavras de Leonardo Onofre,
Entre os ídolos do cidadão de bem está Jair Bolsonaro, defensor de que gays demonstrando afeto publicamente sejam espancados, praticante de nepotismo de longa data, acusado nos idos de 1987 de planejar explodir várias bombas na Vila Militar de Agulhas Negras.O cidadão de bem está sempre alerta. Está sempre querendo reparar problemas na sociedade. Ele está disposto a usar força necessária para tal. Ele bate em panela e em professor com a mesma intensidade. Ele enxerga na força policial a salvação da família tradicional. E no deputado/pastor a sustentação de seus interesses. E os políticos/pastores já ocupam alguns cargos no executivo também, quem sabe um dia chegam a presidência. O cidadão de bem bate palma pra terceirização. E para o confisco da previdência.
Nessas circunstâncias, eu tiro apenas uma conclusão: ainda bem que não estou do lado do bem.
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