terça-feira, 23 de setembro de 2014

Tatuados e preconceituosos

"Preconceito é um juízo pré-concebido, que se manifesta numa atitude discriminatória, perante pessoas, crenças, sentimentos e tendências de comportamento.É uma ideia formada antecipadamente e que não tem fundamento sério." (www.significados.com.br)

"s.m. Opinião ou pensamento acerca de algo ou de alguém cujo teor é construído a partir de análises sem fundamentos, sendo preconcebidas sem conhecimento e/ou reflexão; prejulgamento.
Forma de pensamento na qual a pessoa chega a conclusões que entram em conflito com os fatos por tê-los prejulgado.
Repúdio demonstrado ou efetivado através de discriminação por grupos religiosos, pessoas, ideias; pode-se referir também à sexualidade, à raça, à nacionalidade etc; intolerância." (www.dicio.com.br)

Quando não gostamos de algo ou não concordamos com uma opinião é natural que queiramos justificar nossas divergências. Explicitar nosso gosto pessoal é algo que fazemos todos os dias, o tempo todo; alguns são apenas isso: gosto, preferência. Outros, no entanto, vêm acompanhados de explicações que só parecem fazer sentido para quem está falando. Há ainda os que vão além do gosto e explicitam um julgamento de valor,o qual não cabe à pessoa que expressa sua opinião fazer.

Pessoalmente, eu gosto de modificações corporais das mais variadas, mas não faria algumas em mim por não considerá-las esteticamente agradáveis a meus olhos. Não gosto, por exemplo, do aspecto das bochechas do Bodymoded Punky, em termos estéticos. Eu simplesmente não gosto do aspecto de bochechas muito alargadas. Ponto. Acabei de expressar a minha opinião. Contudo, isso não significa que eu o considere "doido", "estranho", "maluco", nem que eu ache que ele tenha "acabado com a própria vida se deformando assim", e nem que eu o deixe de achar atraente. Eu nem mesmo acho que ele se tenha deformado (no sentido negativo da palavra)!

Dito isso, deparei-me hoje com um vídeo de uma escarificação postado em um grupo dedicado à tatuagem, seguido de comentários bastante desagradáveis. O destaque estava no juízo de valor que as pessoas estavam fazendo de alguém que decide fazer uma escarificação ­ nas palavras de alguns, "mutilação", "aberração", "lesão corporal". Abaixo seguem alguns dos comentários:



A primeira pergunta que se passa na minha cabeça é: qual a diferença da tatuagem para a escarificação? Pois na tatuagem a pele é, como na escarificação, ferida, levando inclusive ao sangramento. Em geral, o corte, na escarificação, é feito apenas uma vez, ao passo que, na tatuagem, é preciso ferir a pele repetidas vezes. Mas, em suma, tanto uma prática quanto outra envolvem LESÃO. Sim, lesão da pele, do tecido, logo, lesão corporal. O conceito aqui é cabível desde que não seja contextualizado em âmbito jurídico.

Essa "aberração" que envolve o corte da pele foi usada por diversos povos, sendo uma opção relativamente comum na hora de se tatuar: primeiro, fazia-se o corte no formato do desenho; depois, cinzas eram esfregadas para que o desenho ficasse marcado na cor escura. Ora, então por que a escarificação não estaria relacionada ao mundo da tattoo?!

Se a tatuagem é arte, é história, é beleza e "isso aí" não o é, por que ambas as tradições caminham lado a lado em culturas tribais, sendo até mesmo misturadas para se obter os melhores resultados de ambas?
Até os anos de 1870, homens maori da Nova Zelândia gravavam tatuagens profundas por todo seu rosto. Padrões eram esculpidos na pele para criar cumes e sulcos paralelos, como desenhos esculpidos na madeira.

Os maori e outros povos do Oeste do Pacífico têm uma longa história de se tatuar. A palavra "tattoo", acredita-se, originou-se na Polinésia, de "tatau", termo que significa "marcar". Algumas das primeiras tatuagens eram cortes em que se esfregavam cinzas, para formar cicatrizes escurecidas.

Eu entendo que muitos considerem a visão de uma escarificação sendo feita algo agressivo, que remete à dor. Mas essa mesma visão é partilhada por muitos a respeito da tatuagem. E, sabemos, tatuados ainda enfrentam preconceito nos dias atuais. Ao que parece, enfrentar preconceito não significa estar sensibilizado para o preconceito sofrido pelo outro, nem estar isento de ser preconceituoso.

Curiosamente, muitos fãs de tatuagem consideram a escarificação um "masoquismo" (pergunto-me se de fato sabem o que é o masoquismo), como se a única razão para se fazer uma scar fosse o prazer em sentir dor ­ não é isto que muitos tatuados e perfurados também ouvem a respeito de seus adornos?!

A preguiça de se informar antes de opinar sobre qualquer coisa é generalizada; somos bombardeados com opiniões intolerantes por toda a internet. Por trás do preconceito de tatuados contra a prática da escarificação está a ignorância a respeito de uma história complexa que não se limita à realidade com a qual estão acostumados, das agulhas descartáveis em leves máquinas de alumínio capazes de trabalhar com a tinta quase que sem restrições. 
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Em função da falta de informação generalizada das pessoas que comentaram no vídeo, eu mesma decidi fazer uma pesquisa e apresentar, no grupo em que aconteceu a discussão, um texto sobre parte da história da escarificação, que você pode ler aqui: "Escarificação na África: tradição em declínio".

Sobre a questão do preconceito, sugiro a leitura de um texto da página Frrrk Guys: "Corpos modificados e o preconceito cotidiano na cidade".

terça-feira, 16 de setembro de 2014

João Antônio Donati, homofobia e a eterna luta contra o mal

Depois de muitos boatos veiculados inclusive por jornais considerados sérios, o caso do assassinato de João Antônio Donati aparentemente foi solucionado. Confessando o crime, Andrié Maicon Ferreira da Silva, um agricultor de 20 anos, nega que tenha havido qualquer conotação homofóbica. O suspeito disse à polícia que não é homossexual, mas que já havia se relacionado com outros homens e, como já sabemos, teve relações sexuais com o próprio João.

A fala do assassino suscita interpretações diversas, e, em se tratando de uma sociedade machista, em que a masculinidade é valorizada inclusive pelo papel "ativo" exercido na atividade sexual, como podemos refletir sobre a atitude do sujeito que confessou o crime?

Nada podemos afirmar sobre o que aconteceu para que a fúria do assassino fosse despertada, mas temos suas declarações, um tanto quanto familiares, sobre as quais podemos especular. Sim, não passam de especulações, mas importantes e necessárias.

A começar pelo sexo entre dois homens, um ato homossexual. Ora, se você pratica um ato homossexual, você pode ser : a) homossexual; b) bissexual; c) curioso. Uma vez que o indivíduo já se relacionara sexualmente com outros homens, sua curiosidade já havia sido sanada, o que me faz descartar a opção "c".

O outro ponto a ser especulado está no que o suspeito se recusou a fazer e que o levou a lutar contra João. Pela entrevista concedida, chamam a atenção as seguintes falas:
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Ele queria fazê otros tipo de coisa lá, eu num aceitei... (sic)
O problema foi ele que quis fazê gracinha comigo... (sic)

Que tipos de "outras coisas" João poderia querer fazer, resultando na fúria de seu parceiro sexual que diz não ser gay? Será que João, após ter sido penetrado, quis, então, penetrar o parceiro? Será que ele pediu ao parceiro que fizesse sexo oral nele?

Não fosse essa entrevista, a questão da homofobia poderia ser esquecida no referido caso. Mas essas declarações podem chamar a atenção para uma homofobia velada que presenciamos dentro do próprio meio LGBT, que discrimina os homossexuais efeminados e os "passivos". Trata-se de um outro nível do "pânico homossexual*"; o pânico de ser taxado como efeminado e, consequentemente, como "passivo" está relacionado ao medo ter sua masculinidade negada. Como explica Daniel Borrillo,
Muitos homens que assumem um papel ativo na relação com outros homens não se consideram homossexuais (…). Mas não basta ser ativo, é preciso que a penetração não seja acompanhada de afeto, pois isso coloca em perigo a imagem de sua masculinidade. Eis então como, a partir de uma negação, vários homens, mesmo tendo relações homossexuais regulares, podem recusar toda e qualquer identidade gay e ser homofóbicos. O ódio serve à reestruturação de uma masculinidade frágil, que necessita se reafirmar por meio do desprezo dos outros-não-viris: o frouxo e a mulher (BORRILLO, 2001).
Conservadores continuam a afirmar que a homofobia é uma criação de ativistas LGBT visando à obtenção de "privilégios". Mas esse assassinato nos mostra como a homofobia pode estar presente até na mentalidade dos homossexuais, disfarçada em discursos como o de "se dar ao respeito", "ser discreto" etc.
A polícia descartou a homofobia como motivação para o crime, mas, aparentemente, o papel do vilão já está bem definido.

Ironicamente, se João não tivesse sido assassinado e a luta corporal contra seu assassino fosse vencida pela vítima, eu me pergunto se não estaríamos diante de uma acusação de estupro por parte do suspeito...

Entraríamos, então, em outra discussão bastante controversa, pautada na boa aparência física de João em confronto à má aparência de Andrié, que aparece nas fotografias com roupas sujas e apresenta uma fala pouco articulada.
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*Eve K. Sedgwick chama de "pânico homossexual" (1990, p. 182) um medo ao qual homens estão suscetíveis em contextos de relações compulsórias com outros homens, nas quais a proximidade gerada por laços como a amizade, a admiração ou a subordinação se separa de forma tênue do desejo homossexual.

**Link para notícia contendo o vídeo da entrevista de Andrié: Mais Goiás