quarta-feira, 17 de abril de 2019

Marielle, milícias, Rio de Janeiro e os Bolsonaros: o que tem a ver? - Parte 2

Para além da defesa pública da atividade de milicianos, a família Bolsonaro, conforme foi se revelando desde o início deste ano, tem ligações com pessoas próximas à milícia que são, no mínimo, suspeitas.

Com a prisão de parte do grupo conhecido como "Escritório do Crime", que dominava Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a mídia divulgou que um dos foragidos, suspeito de liderar o grupo, seria Adriano Magalhães da Nóbrega, justamente aquele que fora homenageado por Flávio Bolsonaro na Alerj em 2003, à época capitão do BOPE.

Outro homenageado por Flávio no passado foi o major Ronald Paulo Alves Pereira, já preso, acusado de chefiar a milícia de Muzema, no bairro do Itanhangá – de onde partiu o carro usado na perseguição e assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Pereira é suspeito de grilagem em Vargem Grande e Vargem Pequena. Quando foi homenageado por Flávio, estava sendo investigado pela participação na execução de cinco jovens em 2003.

Em tempo, "grilagem" é um termo usado para se referir à falsificação de documentos para a obtenção de terras ou prédios públicos ou de terceiros. Historicamente, essa prática no Brasil tem o envolvimento não apenas da milícia, mas também de políticos e, eventualmente, de trabalhadores do judiciário. Na primeira linha de investigação do assassinato de Marielle Franco, acreditava-se que a motivação do crime seria a de que a vereadora estaria atrapalhando o esquema de grilagem com sua atuação nas comunidades do Rio.

Aqui, uma outra coincidência bastante incômoda e curiosa aparece, em relação a um evento recente: dois prédios localizados em Muzema desabaram na última sexta, dia 12 de abril. As construções irregulares são parte da atuação da milícia, que, de posse dos terrenos, ergue prédios residenciais para locação. Ao todo, sete prédios do local estão em processo de interdição desde novembro de 2018, para que sejam demolidos, devido aos riscos que apresentam.

A relatora do referido processo, a desembargadora Marilia de Castro Neves Vieira, votou contra a demolição de um dos prédios que estavam sendo construídos na região. Assim, segundo o prefeito Marcelo Crivella, as edificações no loteamento irregular foram impedidas de ser demolidas em função de liminar judicial. Com o impedimento, as obras continuaram.

O nome da desembargadora é familiar por sua infame atuação nas redes sociais: à época do assassinato de Marielle, ela compartilhou a falsa informação de que a vereadora tinha relação com o Comando Vermelho, motivo pelo qual havia sido eleita. Vieira também publicou, em 2015, que era a favor de um paredão de fuzilamento "profilático" para pessoas como o então deputado Jean Wyllys.

Voltando à questão das milícias e da proximidade com Flávio Bolsonaro, descobriu-se que a esposa e a mãe de Adriano da Nóbrega, da milícia de Rio das Pedras, trabalhavam no gabinete do então deputado até novembro de 2018. Ao ser questionado, Flávio alegou que ambas foram contratadas por seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro após movimentações atípicas de grandes quantias de dinheiro em sua conta. Também recai uma suspeição sobre transações por parte da mãe de Adriano da Nóbrega, Raimunda Veras Magalhães, para Queiroz.

Queiroz alegou ter se tornado amigo de Adriano quando os dois trabalhavam no 18º Batalhão da Polícia Militar e que indicou a esposa e a mãe para o gabinete de Flávio porque, à época, a família passava por necessidades, devido à prisão de Adriano por um auto de resistência.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou que foi movimentado R$1,2 milhão nas contas de Queiroz, advindos de depósitos feitos por outros funcionários tanto de Flávio quanto de Jair Bolsonaro. Além disso, o Coaf apontou um depósito de R$24 mil realizado por Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro – que, segundo o presidente, referia-se ao pagamento de um empréstimo – e 48 depósitos de R$2 mil na conta de Flávio Bolsonaro.

Quando estorou o escândalo do relatório do Coaf, Queiroz procurou abrigo em Rio das Pedras, local dominado pela milícia da qual fazia parte Adriano da Nóbrega. Depois de não comparecer em duas audiências nas quais era esperado para prestar esclarecimentos ao Ministério Público, Queiroz deu entrevista ao SBT, revelando que estaria com câncer. Pouco tempo depois, internou-se no Hospital Albert Einstein para se submeter a uma cirurgia.

Da mesma forma que as movimentações financeiras na conta de Fabrício Queiroz não são compatíveis com sua renda de policial reformado somada à de assessor parlamentar, a internação no hospital mais caro do país também não foi explicada até o momento. Negando qualquer ligação com a milícia, o ex-assessor nada declarou sobre sua estada em Rio das Pedras.

Além de Queiroz, sua filha foi funcionária de Flávio Bolsonaro entre 2007 e 2016. Exonerada, foi, menos de uma semana depois, nomeada como secretária parlamentar de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados em Brasília. Durante o período, Nathalia Queiroz atuava como personal trainer no Rio, apesar de o gabinete atestar sua presença em Brasília. Curiosamente, ela foi dispensada do cargo em outubro de 2018, no mesmo dia em que seu pai foi demitido do gabinete de Flávio.

No relatório do Coaf, Nathalia é citada duas vezes, por ter realizado a transferência de R$84 mil para a conta de seu pai. Vale mencionar ainda que a esposa de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar, e sua outra filha, Evelyn Melo de Queiroz, também já trabalharam como funcionárias de Flávio. Evelyn foi nomeada para ocupar o cargo da irmã, Nathalia, precisamente quando esta passou a trabalhar em Brasília.

Tendo ficado por mais de dez anos como funcionário de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz parecia ter, de fato, uma relação de amizade com toda a família. Segundo reportagem do G1, Fabrício se tornou amigo de Jair Bolsonaro ainda nos anos 1980.

O próprio Jair Bolsonaro disse, em entrevista ao SBT, saber que Queiroz "fazia rolo", sem fazer maiores especificações.

E, aproveitando a temática "rolo", a Folha de S. Paulo investigou um deles, referente a uma van que era de propriedade do agora presidente. O veículo, avaliado em R$89, aparece desde 2006 nas declarações de bens de Bolsonaro. Contudo, a van foi vendida ao ex-militar Jaci dos Santos por apenas R$10 mil em 2016, quando este trabalhava também no gabinete de Flávio Bolsonaro, no qual esteve de março de 2012 a dezembro de 2016, como um tipo de "faz-tudo".

Antes de ir para a Alerj, Jaci dos Santos esteve por cerca de um mês como funcionário do gabinete do próprio Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, como parte de sua assessoria no Rio de Janeiro. Ele dirigia as vans que levavam Bolsonaro e os filhos durante a campanha, para fazer panfletagens.

Tendo comprado a van no final de 2016, Jaci retificou os documentos em fevereiro de 2017, pouco mais de um ano antes de Bolsonaro ter apresentado sua declaração de bens ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Jaci foi aluno de Jair Bolsonaro em 1984, na Brigada Paraquedista e, desde então, nutre uma relação de amizade com o político. Ele estava no barco com Bolsonaro em Angra dos Reis quando, em 2012, o Ibama os autuou por pesca ilegal. O outro parceiro de pescaria envolvido no episódio é Edenilson Garcia, irmão de Walderice Santos da Conceição, que ficou conhecida como "Wal do Açaí" e é suspeita de ter sido empregada por Jair Bolsonaro como funcionária fantasma.

Se, como vimos na primeira postagem, a família de Bolsonaro sempre se empenhou em defender militares e policiais mesmo que estes estejam envolvidos com atividades criminosas, os acontecimentos nos mostram ainda que, pelo menos tangencialmente, o clã de políticos acabou se relacionando ou com milicianos ou com amigos de milicianos. Mesmo que os Bolsonaro não soubessem de todas essas relações, trata-se de uma abertura perigosa, pois permite que tais grupos criminosos possam rondar e até mesmo vigiar o que ocorre nas esferas oficiais do poder.