sábado, 23 de agosto de 2014

Freak shows na TV


Convidado para vir ao Brasil pelo canal Bandeirantes, o alemão Joel Miggler, conhecido como Bodymoded Punky não deve ter imaginado que seria mostrado na TV como uma aberração quase bestial, sem ter nem mesmo a oportunidade de falar sobre si e sobre suas motivações enquanto adepto de modificações corporais consideradas extremas. De fato, o jovem chama a atenção até dentro da comunidade dos modificados, devido à escolha incomum de alargar as bochechas. Assim, é natural que sua imagem gere reações diversas, que vão de uma curiosidade genuína à incredulidade.

Pensando na televisão de hoje, estamos bem cientes de que o sensacionalismo é algo com o que somos obrigados a conviver diariamente, nessa guerra por audiência travada entre as emissoras. Nesse contexto, os conteúdos são produzidos muito mais para prender a atenção do público pelo maior tempo possível que propriamente para informar ou esclarecer. E é óbvio que, entre as possibilidades de se chocar e fascinar a audiência, está tudo aquilo que for considerado incomum, estranho, que "salta aos olhos" do homem médio imerso em seu cotidiano.

No século XIX, uma forma bastante popular de entretenimento com características semelhantes era o freak show, em que "aberrações" eram exibidas dentro de jaulas ou em picadeiros de circos. Homens tatuados dos pés à cabeça, mulheres com barba, indivíduos com deformidades congênitas, gêmeos siameses, anões, enfim, todos os anormais eram expostos como animais, como verdadeiras bestas, com o objetivo de atrair um grande número de visitantes - e, eventualmente, os apresentadores chegavam a desafiar o público a se aproximar e a tocar aquelas criaturas (qualquer semelhança com o fato de Luiz Bacci oferecer 50 reais à mulher que tivesse "coragem" de beijar o Bodymoded Punky não é mera coincidência).


 O filme Vénus Noire (no Brasil lançado como "Vênus Negra"; foto a seguir) retrata, com base em fatos reais, essa realidade que, hoje em dia, consideraríamos revoltante - falhando em perceber que isso ainda acontece atualmente, tendo apenas ganhado uma nova roupagem.

Em vez dos freak shows, agora temos programas como o "Tá na Tela", apresentado por Luiz Bacci e exibido pela Band. Ali, observamos os mesmos princípios de um show de aberrações serem colocados em prática: tirar proveito do incomum para atrair seus espectadores, sob a justificativa de se tratar de uma "curiosidade". Uma concepção semelhante está nas "coberturas jornalísticas" de convenções de tatuagem pelas emissoras populares; os supostos jornalistas já chegam no local procurando por aqueles com aparências mais extremas e chamativas. Uma vez que a tatuagem vem se popularizando, a preferência agora se volta para a exibição de indivíduos com implantes, línguas bifurcadas, eyeball tattoos, alargadores grandes etc.

De certa forma, olhar para o exótico, para o Outro, nos shows do século XIX, oferecia ao espectador um reforço da sua sensação de humanidade, de "normalidade", de pertencimento à civilização. Por se tratar de um período imperialista, em que países europeus colonizaram territórios na África e na Ásia, muitos dos freaks apresentados vinham justamente dessas terras colonizadas; eram considerados selvagens, bárbaros que, não tendo sido "treinados" para viver na civilização, precisavam ser contidos em jaulas ou controlados por seus "treinadores".


Nos dias de hoje, o que permanece é o estigma cultural de que a modificação do corpo é uma prática tribal, portanto bárbara, devido a essa associação inicial com rituais indígenas ou de tribos africanas. Num contexto urbano, o modificado seria um rebelde que rejeita a civilização, recusando-se a manter uma aparência dita "normal".

Atualmente, a ideia de se exibir um indivíduo que sofra de alguma grave condição médica que tenha resultado em deformidade física é prontamente condenada se feita nos moldes dos antigos freak shows ou da maneira como o Bodymoded Punky foi mostrado. Para essas pessoas, o palco agora deve ser montado com base no drama e na comoção.

Mas os modificados, por sua vez, escolheram ter uma aparência chamativa, ou seja, "deformaram-se" por vontade própria e conscientes do impacto que causariam. E ao que parece a mídia toma por lógico um desejo, por parte dessas pessoas, de chamar a atenção, de "aparecer" - afinal, não deve haver outra razão para que alguém decida "se mutilar" assim. A mensagem que nos é passada pelos veículos de comunicação não especializados, portanto, é a de que os indivíduos adeptos da modificação corporal são os novos deformados, prontos para servir de entretenimento ao homem comum.


A verdade é que em nenhum momento (talvez em toda a história!) a indústria do entretenimento mainstream pareceu ter a intenção de "jogar limpo", cegas pela possibilidade de aumentar seus números de espectadores.
No século XIX, muitos eram persuadidos a se apresentar sob a perspectiva de serem reconhecidos como performers, como verdadeiros artistas, de ganharem um bom dinheiro e viverem dignamente - já que a maioria, quando "descobertos" por donos de circos ou de shows itinerantes, encontravam-se em estado deplorável, em meio à miséria.

Hoje, alguns modificados e profissionais do ramo cedem seu direito de imagem sob a promessa de uma matéria idônea, de uma entrevista informativa, esperando se tratar de uma oportunidade de se mostrar ao público geral com seriedade, a fim de ajudar a diminuir o preconceito. Contudo, acabam se vendo dentro de um novo freak show, exibidos como criaturas bizarras. 
A expressão de Punky durante o programa nos conta tudo isso sem que tenha sido preciso dizer uma palavra. Trazido para se apresentar na TV brasileira, ele provavelmente esperava responder a perguntas sobre suas modificações; sobre como as decidiu fazer e por quais procedimentos passou; sobre como lidava com essas alterações do corpo no dia-a-dia e quais cuidados tomava... Em vez disso, foi exibido não só no palco, mas também em uma feira, com direito a um capuz preto que, retirado pelo apresentador, revelava a "aberração" que é seu rosto com bochechas alargadas.

Ora, a brincadeira, a piada, a "espetacularização" em resposta ao bizarro é uma reação mais adequada ao homem "comum" que a reflexão e a indagação crítica. Quando o bobo da corte era o responsável por entreter e fazer rir o monarca e seus súditos, o alvo da graça era justamente o diferente, o "ridículo". Tendo seu defeito apontado e ridicularizado pelo bobo, o diferente sentia-se pressionado a se adequar ou a esconder seu defeito a fim de se misturar ao restante da sociedade. De forma mais ou menos velada, o bobo da corte era o carrasco dos costumes.


Com roupagens menos óbvias, os bobos da corte se propagam no mundo contemporâneo em formatos variados. No entanto, sua função permanece: apontar para o anormal e retratá-lo como ridículo. Castigado, esse anormal é incentivado a perseguir a normalidade, a ser "como todo mundo".
O sensacionalismo, portanto, não é somente uma exibição do grotesco pela curiosidade, mas também uma forma de se reforçar as características negativas em busca de se certificar que aquele grotesco será mantido à margem, distante da normalidade conveniente.

Ver o diferente como louco reflete nossa própria necessidade de pertencer, de sermos aceitos pelo grupo majoritário ao qual chamamos de sociedade. Justamente por isso repreendemos o que se destaca - para evidenciar-lhe seu não pertencimento e, quem sabe, influenciá-lo a se ajustar.
Devemos nos lembrar, então, do abjeto, este que perturba a ordem por não estar em harmonia com a sociedade "uniforme", universalista. Pois é exatamente esse elemento perturbador que nos faz encarar nossa condição de sujeito e de ser humano.


Por vezes nos esquecemos de que aquele para quem apontamos, de quem rimos e a quem julgamos e repreendemos está nos fazendo encarar nossa própria humanidade - moldável, vulnerável e eternamente questionável.