quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Caos e caça às bruxas


Faz tempo que não encontro palavras para escrever aqui. É um misto de cansaço, falta de tempo, excesso de tarefas e muita ignorância vista no dia a dia da internet, esta última tomando proporções absurdas nos últimos dias, com a polêmica do "QueerMuseu" e o falso alarmismo criado pelo MBL em parceria com cristãos conservadores.

Eu estudei - muito - sobre "queer" durante o mestrado e continuo a estudar sobre esse tema, porque sei que ele é alvo de críticas e das acusações mais bizarras, não apenas por parte de conservadores, mas também por membros da comunidade LGBT e por ativistas do feminismo que propagam inverdades como a de que o "queer" defende a pedofilia.

Em julho, durante o pouco que tive de férias, pude reler um livro chamado "Cultura do medo", do sociólogo Barry Glassner, em que ele mostra como nossa cultura tem cada vez mais se voltado para o fomento do medo, do temor, da insegurança, principalmente por conta da maneira como os veículos de comunicação funcionam, transformando histórias pontuais em exemplos do perigo constante que o cidadão corre e distorcendo dados para comprovar essa realidade criada por eles mesmos.

O argumento de Glassner é que é muito mais lucrativo manter o cidadão com medo - fazendo com que ele compre armas, caros sistemas de vigilância, seguros de vida... - e, para isso, eleger inimigos específicos - como os negros que vivem nas periferias e as drogas -, tirando os fatos de seus devidos contextos e transformando-os em perigos absolutos, o que serve bem a muitos políticos em suas candidaturas. (Adendo: o livro se refere aos Estados Unidos na década de 1990 e início dos anos 2000, mas o argumento cai como uma luva para a atual situação brasileira, em que Bolsonaros e Felicianos se beneficiam do pânico moral causado pelo sensacionalismo da mídia em detrimento de grupos minoritários específicos.)

O "queer" é um desses inimigos e, como foi possível testemunhar nesta última semana, sua demonização é bastante conveniente. Por se tratar de um posicionamento amplo e sem uma definição precisa, o "queer" - e a Teoria Queer - pode ser aplicado de muitas formas para justificar comportamentos e escolhas identitárias variadas. E se grupos conservadores ou ativistas podem moldar seus escritos e teorias para provar seus argumentos contrários ao "queer", é óbvio que grupos obscuros também podem fazer o mesmo para tentar validar seus atos - e, sim, refiro-me a defensores da pedofilia e da zoofilia!

Afinal de contas, é muito fácil recortar parágrafos e trechos de livros de forma a usá-los para propósitos aos quais eles não servem quando colocados em contexto - Derrida explica melhor essa questão ao abordar a citacionalidade. A verdade é que fazemos isso o tempo todo, não importa qual doutrina ou ideologia sigamos.

Pois bem, nesses anos em que venho me dedicando aos Estudos Queer (pelo menos desde 2011), o que vejo é uma gama de teorias e propostas bastante complexas que têm como prioridade o questionamento das regras que nos são impostas como "naturais", daquilo que nos é colocado como "normal". Se eu me deparei com defesa da pedofilia? Uma única vez, por um grupo de homens heterossexuais, em nada relacionados ao movimento LGBT. Defesa da zoofilia? O grupo que vi defendendo essa prática não evocava, em momento algum, a Teoria Queer.

E que fique bem claro: eu, que considero os Estudos Queer uma excelente ferramenta de questionamento do status quo da sociedade e das imposições de gênero e sexualidade que transformam os sujeitos em receptáculos de regras, abomino ambas as práticas e defendo que sejam consideradas crimes em qualquer lugar do mundo. Mas acho necessário falar sobre elas com objetividade e distanciamento, entendendo que elas existem e sempre existiram, pois a única forma de lidar com o problema é compreendendo as condições que permitem sua emergência.

Com a Teoria Queer, temos a possibilidade de, como pesquisadores e professores, falarmos não apenas das diferenças de gênero e sexualidade aceitáveis, mas também de abordarmos coisas abjetas e moralmente condenáveis por um viés crítico, sendo uma importante ferramenta de discernimento para aqueles que têm maturidade o suficiente para lidar com as complexidades da teoria propriamente dita.

Quanto à exposição "QueerMuseu", que o Santander decidiu cancelar por pressão de um grupo formado por uma direita de pretensos liberalistas não-liberais que decidiram se aliar a conservadores e cristãos picaretas, o propósito me parece o mesmo: refletir sobre o que nos é imposto em relação a expressões de gênero e sexualidades.

Sendo assim, um quadro como o de Adriana Varejão, intitulado "Cena de interior II", em que é possível observar uma pessoa segurando um animal enquanto a outra o penetra, mais duas pessoas brancas fazendo sexo com um negro e uma pessoa de aparência oriental em uma rede sendo penetrada por um negro, além de duas mulheres japonesas usando uma espécie de brinquedo sexual, é uma representação da realidade. Cabe a quem contempla a obra interpretá-la.


O que eu vejo, na pintura, são cenas de práticas que, de fato, acontecem. O negro, desde o período da colonização, vem sendo usado como objeto sexual, abusado, estuprado, tanto para que permaneça em contínua posição de subjugado (uma vez que estupro tem mais a ver com poder do que com desejo sexual) quanto para "aliviar" a libido do colonizador que, assim, não precisa deflorar uma branca.

O sexo com animais tem sido uma prática comum no interior do país e não é raro nos depararmos com homens que fazem piada com o fato de já terem "transado" com galinhas, cabras, vacas, jumentas... Adriana Varejão não está fazendo apologia a nada disso, está apenas ilustrando esses casos. Não à toa, o quadro pertence a uma série chamada "Histórias à margem", em que tudo aquilo que permanece escondido, omitido, é revelado. A própria artista já disse que não tem intenção de julgar se aquilo é bom ou ruim.

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