segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Sobre o ENEM e as idiotices que as pessoas falam

Doutrina é definida como um conjunto de princípios que servem de base a um sistema, que pode ser literário, filosófico, político e religioso. Doutrina também pode ser uma fonte do direito.  
Doutrina está sempre relacionado à disciplina, a qualquer coisa que seja objeto de ensino, e pode ser propagada de várias maneiras, através de pregações, opinião de pessoas conhecidas, ensinamentos, textos de obras, e até mesmo através da catequese, como uma forma de doutrina da Igreja Católica. (fonte: http://www.significados.com.br/doutrina/)
Uma movimentação bastante curiosa vem acontecendo em torno da prova do ENEM deste ano de 2015: indivíduos doutrinados pela direita acusam o teste de ser uma tentativa de doutrinação pela esquerda.

A razão dessas acusações vem, principalmente, de UMA única questão objetiva e da proposta de redação. Diga-se de passagem, não há nada na questão em específico que incite o apoio ou a crença do aluno que esteja fazendo a prova, como se pode ver:


Trata-se de uma questão modelo de toda e qualquer prova, na qual é retirado um trecho de um livro e solicitado ao aluno que contextualize o texto com um período histórico.

Sobre a obra escolhida é preciso explicar, ainda, que são dois livros relativamente extensos, em que a autora discorre sobre a condição feminina como ela a percebia em sua época. O trecho que começa com a famosa frase “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” diz respeito a como a criança, nascida “fêmea”, passa por uma série de experiências que vão determinar sua identidade de “mulher”. Isso quer dizer que a “fêmea” não nasce sabendo cuidar da casa, por exemplo, nem criar os filhos, nem sendo submissa ao homem – ela se torna uma pessoa assim.

Convenhamos, não é preciso nem sequer coadunar com o pensamento feminista para compreender o quão lógica e óbvia é essa frase.

O pensamento de Beauvoir inspirou o movimento feminista, e essa é toda a informação que precisaríamos saber para responder à questão. Eu nem mesmo precisaria conhecer Simone de Beauvoir e sua biografia para marcar uma resposta correta.

Em suma, a biografia de Beauvoir não interessa – até mesmo porque o importante, em relação a sua obra, foram as releituras que ela originou, não o que ela, como pessoa, fez em vida.

É a mesma coisa de saber, por exemplo, que as ideias propagadas pela Revolução Francesa influenciaram a Inconfidência Mineira. Ou que a utopia nazista de que seria possível controlar a genética a fim de se produzir seres humanos fisicamente superiores fez com que os médicos do Reich alemão conduzissem uma série de experimentos e estudos científicos, algo que contribuiu imensamente para o avanço da medicina. São fatos historicamente verificáveis que independem das ideologias defendidas por uma pessoa. 

O mesmo acontece no caso da proposta para a redação: colocaram-se, ali, dados específicos. A morte de mulheres provocada por seus companheiros é uma realidade. E antes que perguntem, há, sim, assassinato de homens por suas esposas, bem como abuso físico e psicológico dos parceiros pelas parceiras. Mas não era disso que a proposta da redação falava.

Não é preciso ser feminista para constatar que, em muitas famílias, o senso de dominação do esposo/pai leva à agressão e até ao assassinato da mulher. Não é preciso ser feminista para constatar também que a morte de mulheres provocada dentro de uma situação doméstica é incrivelmente alta, pois existem pesquisas que revelam esses números – essa é uma questão de segurança pública.

O tema para a redação era esperado, aliás, por conta de uma pesquisa realizada pelo DataSenado em agosto deste ano. Estamos cansados de saber que precisamos estar atentos às notícias e acontecimentos pois são as maiores indicações de qual será a proposta da redação. Poderia muito bem ter sido pedido para que o candidato dissertasse sobre o racismo e a xenofobia, em função dos casos de agressão a imigrantes que foram noticiados. 

Em momento algum é pedido que o aluno assuma uma postura política de esquerda ou de direita. Ele deve tão somente dissertar de maneira lógica sobre um dado que lhe foi apresentado.

Aliás, não há justificativa para crer que UMA PROVA é um instrumento de doutrinação, uma vez que nunca houve um indivíduo que mudasse suas crenças sócio-políticas depois de prestar o ENEM. O exagero de quem acusa o exame de tentar doutrinar me parece, antes, uma espécie de delírio coletivo desses que adotaram o que acham ser o "comunismo" como bode expiatório.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A dor e o suicídio das pessoas trans


Pessoas transgênero estão sujeitas à violência desde muito cedo, tendo sua identidade de gênero deslegitimada por um discurso que essencializa a aparência dos genitais, logo no nascimento. Assim, pressupõe-se que nosso gênero deva estar de acordo com o suposto “sexo biológico” – digo suposto pois essa determinação é feita pelo médico baseada somente na existência de pênis ou vagina.

Essa determinação, aparentemente simples, é o primeiro ato de constrição das identidades de gênero, o qual será reforçado por atitudes subsequentes que incluem a adoção de códigos de vestuário e comportamento – o conjunto dos códigos adotados indica a expressão de gênero que se espera do indivíduo com identidade de gênero masculina ou feminina.

Das meninas é esperada uma série de atitudes e preferências que as diferenciem dos meninos e vice-versa. Essas expectativas são plantadas logo que se descobre a gravidez: o feto mais agitado só pode ser um menino; no ultrassom, a imagem de um pênis avantajado é sinal de que ele será um “macho de verdade”.

Desde muito nova a criança cujo comportamento (ou seja, cuja expressão de gênero) não aparenta estar de acordo com o gênero que lhe foi designado é constantemente perseguida, pressionada, forçada a se “normalizar”. Trata-se de uma violência simbólica – não rara acompanhada de violência física – que possivelmente afetará o indivíduo pelo resto de sua vida.

A perseguição, de fato, não é exercida apenas pela família. Ela vem de frentes diversas, que incluem os amigos, a escola (logo no jardim de infância), a igreja, os vizinhos e vão continuar no trabalho, na faculdade, nas instituições de saúde, na política e assim por diante.

Essa pressão intensa pela adequação, somada aos discursos de exclusão e de negação da legitimidade da condição transgênero leva essas pessoas a internalizarem a discriminação. Elas passam a desprezar-se como a sociedade as despreza, a sentir vergonha de si mesmas e “dos problemas que causam” (por resistirem à adequação) – afinal, a culpa não é, nunca, da sociedade, mas dos “anormais”.

Dessa forma, o suicídio acaba sendo encarado, pelas pessoas trans, como uma saída de um mundo em que elas não se encaixam, numa sociedade que é incapaz de aceita-las como elas são.
Quando se matou, em dezembro de 2014, Leelah Alcorn, de 17 anos, deixou uma mensagem em seu Tumblr, dizendo: “A vida que eu teria vivido não valia a pena ser vivida... porque eu sou transgênero”.

Esse sentimento traz alguma compreensão às estatísticas de pesquisa publicada em janeiro de 2014 pelo Instituto Williams de Los Angeles, que revela que 41% das pessoas trans entrevistadas já tentou cometer suicídio em algum ponto da vida – em comparação a 20% de gays, lésbicas e bissexuais e 4,6% da população geral. Em outra pesquisa, feita em Ontário, no Canadá, 35% das pessoas trans entrevistadas relataram ter pensado em suicídio em 2014 e 11% chegou a tentar se matar.  

No Brasil ainda não há uma pesquisa formal realizada entre pessoas transgênero, mas, infelizmente, suponho que os números apresentem uma mesma realidade. Entre jovens LGBTTA+, o desejo de se matar não parece ser um relato pouco frequente – na verdade, o que impede de haver mais pesquisas sobre o tema é sua condição de tabu.

Pouco tempo depois da morte de Leelah, em fevereiro de 2015, Ash Haffner, um garoto trans de 16 anos, também cometeu suicídio jogando-se na frente de um veículo – a mesma maneira como Leelah tirou sua vida.

As reportagens sobre Leelah e Ash chamam a atenção por conta das declarações dos pais de ambos os jovens. Claramente, os pais de Leelah não aceitavam sua transgeneridade, algo que ela mencionou em seu bilhete de suicídio e que foi reforçado pelas declarações dadas por sua mãe à CNNtratando-a como “seu filho” e afirmando que não apoiavam sua decisão, “religiosamente”.

A mãe de Ash, por sua vez, insiste em trata-lo no feminino em declarações à TV, dizendo que o bullying foi a causa do suicídio “de sua filha”.  

Neste outubro de 2015, Ashley Hallstrom, de 26 anos, também se jogou na frente de um caminhão em uma estrada movimentada. De acordo com a página Planet Transgender, ela é a 20ª pessoa trans nos Estados Unidos a cometer suicídio em 2015.

Em sua nota de suicídio no Facebook, Ashley conta que desde cedo aprendeu que “pessoas como ela eram aberrações e abominações”, o que fez com que ela odiasse quem ela era. Apesar dos anos de sofrimento e depressão, Ashley manteve o desejo de ajudar outras pessoas trans ao deixar sua carta, que pede para que as pessoas compartilhem o máximo possível.


Como Leelah, Ashley alerta para como a sociedade precisa mudar para ser capaz de aceitar, receber e ajudar as pessoas trans. 

O estudo canadense publicado em junho de 2015 (sobre o qual falei anteriormente), realizado entre habitantes da cidade de Ontário, é um dos primeiros a considerar fatores que podem intervir nos riscos de suicídio das pessoas transgênero e as conclusões são bem claras: apoio social, redução da transfobia e o acesso a documentos retificados de acordo com a identidade de gênero são fatores associados a grande redução relativa ou até absoluta dos riscos de suicídio, bem como o acesso à terapia hormonal e às cirurgias que a pessoa julgar necessárias. Além do mais, o apoio dos pais foi bastante associado à redução do pensamento de suicídio entre as pessoas, juntamente com a auto-aceitação.