quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O que mais te choca de verdade? (ou "A crucificação não é apenas encenada")

Desta vez não se tratou de uma encenação. Viviany Beleboni foi agredida ao ser reconhecida na rua por um sujeito que, segundo ela relatou em vídeo, disse que ela não era Deus e tentou esfaqueá-la.

O fanatismo demonstrado por muitos, desde que a transexual apareceu crucificada em um carro na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo em junho deste ano, é preocupante porque demonstra uma falta de senso crítico atrelada a uma idolatria cega à religião. Foi esse mesmo fanatismo que levou à agressão de um grupo de candomblecistas, em que Kailane Santos, de apenas 11 anos de idade, foi atingida na cabeça por uma pedra jogada pelos intolerantes.

Ávidos em criticar a heresia alheia, indivíduos que cometem tais atos parecem não ter noção de que estão, eles mesmos, indo de encontro aos ensinamentos bíblicos que dizem seguir com tanta devoção (já falei sobre o oportunismo e moralismo desses líderes religiosos e seus seguidores aqui e aqui também).



Sua religião, em vez de torna-los pessoas compreensivas, que pregam o amor e são empáticas ao sofrimento das minorias, os leva a crer que o “outro” – aquele de quem deveriam ter piedade e com o qual deveriam ser, no mínimo, tolerantes – deve ser prontamente eliminado. Trata-se da aceitação de um autoritarismo que usa a religião como justificativa para o cumprimento de seus interesses.

Enquanto os que creem nos ensinamentos de seus respectivos chefes religiosos se esforçam para cumprir cada uma de suas ordens, os sujeitos excluídos sentem o medo constante de serem perseguidos como resultado desse cumprimento. Em um estado cego ou de transe para com a “arrebatação” que é pregada nesses templos – cuidadosamente ambientados para que cada sujeito ali presente seja contagiado com o “poder da glória” em toda parte de seu corpo – o público não é capaz de perceber que seus gritos e clamores satisfazem o desejo de uma pessoa – do pastor, do pregador – e não do Senhor que tem seu nome apropriado.

Com essa perseguição do diferente, do “inimigo”, do bode expiatório que dessa vez assumiu a forma de Viviany Beleboni encenando a crucificação, fieis acreditam estar sendo bons seguidores, bons soldados.

Como se não bastasse, o medo de Viviany soma-se à descrença em uma polícia que nada fará para a proteger. Pelo contrário, a tratarão como culpada por seu ataque, como provocadora da ira de intolerantes, sendo a própria instituição policial incapaz de respeitar uma pessoa que não está de acordo com a matriz de inteligibilidade em que vivem.
A fala de Beleboni evidencia esse despreparo policial ao qual temos de nos sujeitar e a frustração de não poder ter esperança alguma de que a justiça seja feita: “Vai à delegacia? Para quê? Para me tratarem que nem um homem lá? Para rirem da tua cara e não dar em porra nenhuma?”

Enquanto às pessoas trans são negados os direitos mais básicos, aos conservadores a satisfação parece vir na forma de um congresso recheado pelos religiosos fundamentalistas que querem fazer de sua religião uma fundamentação para governar, passando por cima do princípio da laicidade do Estado e colocando sua fé evangélica acima de todas as outras. E, vale a pena repetir, o que usam de fundamento são suas próprias convicções e interesses mascarados de preceitos bíblicos, não os ensinamentos de Deus.

Do lado daqueles que se recusam a dialogar e a tentar compreender o que levou Viviany a se expor, crucificada, o ódio permanece o mesmo. Ao que parece, não interessa que ela tenha realizado essa performance para chamar a atenção para um sério problema do país que é a extrema violência a que pessoas LGBT, principalmente travestis, enfrentam diariamente; interessa que Jesus não pode ser representado por uma mulher trans em uma Parada do Orgulho LGBT, pois se trata de um exagero, de uma heresia, de uma provocação. Mas quando religiosos usam a imagem de Jesus por motivos mercadológicos, tudo bem. E quando usam o nome de Deus para esfaquear outro ser humano, tornam-se até heróis.