sábado, 29 de agosto de 2015

Todas as trans finíssimas: meme ou problema social?


Na internet tudo acontece de uma hora para outra e, do nada, uma nova frase ou expressão de repente é usada por todos - mesmo os que não sabem de sua origem.
Depois do "eu quero é close", "5 minutos de beleza" etc., a expressão do momento é "todas as trans finíssimas fumando maconha", título de um vídeo que parece ter sido gravado pela mesma pessoa, ao que tudo indica, uma travesti ou mulher trans que decidiu gravar as amigas na noite.

Para mim, a graça do vídeo está no bom humor com que as próprias mulheres se mostram, mesmo em uma situação que retrata a marginalização trans: aquelas pessoas estão ali se prostituindo.

No Brasil, a maioria das travestis e mulheres trans não encontram outra saída diante da exclusão a não ser ir para as ruas se prostituir, uma vez que não têm nem mesmo suas identidades sociais respeitadas e se veem juridicamente impedidas de ter carteira assinada ou serviço médico decente simplesmente porque seus corpos não estão em conformidade com seus documentos - e, para mudar os documentos, um processo longo e ardiloso, é preciso, antes mudar o corpo e apresentar laudos médicos...

As travestis que são, com frequência, rejeitadas pela família e pela comunidade em que vivem, expulsas de casa e completamente minadas de seu direito à cidadania chegam a tomar atitudes extremas para moldar o próprio corpo, aplicando silicone industrial, fazendo cirurgia em clínicas clandestinas....

Quando homossexuais reproduzem essa fala das "trans finíssimas" eles contribuem ainda mais para uma invisibilização da mulher trans, uma vez que se apropriam da voz dessas pessoas marginalizadas apenas para fazer piada. Nesse sentido, a real situação apresentada pelo vídeo ganha ares de mera brincadeira, e deixa de ser reconhecida como resultado de um problema social.

Uma confusão frequente entre o senso comum é a noção de que drag queens - homens, em sua maioria gays, que se vestem de mulheres - são mulheres trans. Contudo, a prática drag é voltada para o entretenimento, e sua crítica aos papéis de gênero está calcada na imitação de um ideal de feminilidade que é, por si só, artificial. Pode ser que uma mulher trans tenha se tornado drag queen para experimentar com o feminino antes de se definir como trans, e que encontre na prática uma arte libertadora.

No entanto, em termos gerais, o homem que se veste de mulher para fins artísticos não passa pela mesma experiência que a mulher que, tendo sido designada como homem desde seu nascimento, toma a decisão de modificar seu corpo para expressar sua identidade feminina em todos os momentos de sua vida.

Se, por um lado, é triste notar que algumas drags chegam a reproduzir discursos transfóbicos, por outro seria importante que pudesse haver um esforço conjunto para maior conscientização. A sigla do movimento deixou, há muito, de ser a excludente "GLS" para tentar abarcar um número maior de pessoas marginalizadas por conta de sua sexualidade e/ou expressão de gênero... Mas, infelizmente, a adoção de uma nomenclatura como "LGBT" não significa a automática mudança de atitudes.

A letra "T", na sigla, representa pessoas trans, incluindo, aí, travestis e transexuais, entre outras tantas expressões de gênero. São essas as "trans finíssimas" com as quais temos que nos unir e sobre as quais devemos falar, devemos abrir caminho para as vozes "T" - e não achar que a eliminação de rótulos vai simplesmente promover uma união que, na verdade, seria apenas de fachada.


Aproveitando o tema, segue também uma fala importantíssima da trans ativista Daniela Andrade que expõe a problemática das apropriações de imagens de trans e travestis apenas como memes:

Quando é para fazer milhares de memes da Vanessão, fazer remix da travesti semi analfabeta na delegacia, transformar em hino o bordão "se isso é estar na pior, o que é estar bem né?", amar as mulheres trans e travestis fumando maconha e dizendo pra todas que são trans finíssimas, aí o povo lembra exaustivamente de travesti e transexual, inclusive os gays.
Mas quando a gente vai falar de políticas públicas para travestis e transexuais, de gente morrendo numa fila do SUS à espera de uma cirurgia, de gente tentando o suicídio sem que os governos dos estados e o governo federal se lembrem que essa população precisa de hormônios, de cirurgia de remoção de silicone industrial, de próteses, de gente obrigada a se prostituir, de gente que foi expulsa da escola ainda no fundamental dado todo o preconceito que precisou enfrentar, que foi expulsa de casa, de quem se cirurgiou e não existe ginecologista ou urologista que as atendam, do judiciário exigindo que nos cirurgiemos para mudar nossos documentos. 
Nesse momento deixa de ser interessante falar de travesti e transexual, e passamos a escutar o cantar dos grilos como resposta à pergunta: o que vocês vão fazer para melhorar esse quadro?
Fora lembrar da gente sempre como palhaças, o que mais?