terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Deus fez o homem, a mulher e as pessoas trans


O chato de você discutir com alguém que usa uma citação bíblica para comprovar seu ponto de vista restrito é que, para essa pessoa, tudo é fruto da vontade de Deus. Por essa lógica, devemos, todos, passar a vida sem modificar nossos corpos; devemos aceitá-los porque estariam de acordo com a vontade divina. Logo, uma pessoa transgênero vai contra essa vontade ao passar pela transição. Mas como é que esse leitor tão ávido da Bíblia e seguidor da palavra de Deus sabe que a transgeneridade não é, também, vontade Dele? Como podemos garantir que, existindo um Deus, ele não faça com que determinadas pessoas nasçam com uma incompatibilidade entre mente e corpo, sabe-se lá por qual motivo?

Para os defensores do determinismo biológico, que afirmam que só existe "macho" e "fêmea", configurações indicadas pelo sistema reprodutor, podemos rebater que exemplos de "transgeneridade" não ocorrem apenas entre os seres humanos - o que difere nossa transgeneridade seria a complexidade da nossa expressão social.

Entre as hienas, por exemplo, são as fêmeas que apresentam personalidade dominadora - característica que, em nossa espécie, afirmamos ser uma essência do homem - e detêm o falo (seus clitóris costumam ser maiores que os pênis dos machos e é a hiena com o clitóris maior a mais disputada para o acasalamento). Entre os leões, algumas fêmeas desenvolvem jubas e são, então, tomadas como machos.

Saindo da categoria dos mamíferos, podemos encontrar ainda os escorpiões amarelos, que se reproduzem por partenogênese porque não existem machos na espécie. Isso sem falar em todas as espécies para as quais a regra é o hermafroditismo (tênias, minhocas, alguns peixes etc.).

Falo disso pois ainda me deparo com muitas pessoas deslegitimando a transgeneridade com base em falsos argumentos biológicos, sem se preocuparem com o que existe em termos de estudos médicos e pesquisas, algumas delas que continuam a ser desenvolvidas e aprofundadas. É possível, sim, indicar causas biológicas da condição trans que fazem com que a pessoa note uma incongruência entre seu corpo e sua percepção de si mesma.

Até hoje, descobriu-se que o receptor de andrógenos, também conhecido como NR3C4, é ativado pela ligação com a testosterona ou dihidrotestosterona, em que tem um papel crítico na formação de características sexuais masculinas primárias e secundárias. Hare et al. descobriu que transexuais do [gênero] masculino para o feminino (mpf) apresentam repetições mais longas do gene, o que reduziria sua efetividade ao acoplar testosterona.

Sobre um variante genotípico para um gene chamado CYP17, que age nos hormônios sexuais pregnenolona e progesterona, descobriu-se estar ligado à transexualidade do [gênero] feminino para o masculino (fpm). Essas pessoas não só apresentam o variante genotípico com maior frequência, mas também têm uma distribuição alela equivalente à dos controles masculinos e diferentemente dos controles femininos.

Zhou et al. (1995) descobriu, em estudo pioneiro, que uma região do cérebro chamada de núcleo leito da estria terminal (em inglês designado pela sigla BSTc, em português, NLET) - conhecida por respostas ao sexo e à ansiedade - aparece, em transexuais mpf, no mesmo tamanho considerado normal para o sexo feminino, enquanto trans fpm apresentam o tamanho que é normal para o sexo masculino. Os transexuais do estudo haviam tomado hormônios, mas entre os indivíduos controle que, por uma variedade de razões médicas, haviam experienciado alguma condição hormonal reversa, o tamanho do NLET ainda se apresentavam de acordo com o gênero com que se identificavam. Não foi encontrada nenhuma relação com a orientação sexual.

Em outro estudo, por Kruijver et al. (2000), focou-se no número de neurônios do NLET em vez de seus volumes. Curiosamente, os resultados encontrados foram semelhantes aos de Zhou et al. (1995), com diferenças ainda mais dramáticas. Um sujeito mpf que nunca havia tomado hormônios também foi incluido e, ainda assim, sua contagem de neurôneos foi correspondente à dos cérebros femininos.

Em 2002, um estudo feito por Chung et al. descobriu que dimorfismos sexuais significantes no NLET não estão estabilizados até a idade adulta. Chung et al. teorizaram que mudanças nos níveis de hormônio no feto produzem mudanças na densidade sináptica do NLET, na atividade neuronal ou no conteúdo neuroquímico, que mais tarde vão resultar em mudanças de tamanho e contagem de neurôneos, ou que o tamanho do NLET é afetado pela falha em se gerar uma identidade de gênero consistente com o sexo anatômico.
Ao rever as evidências em 2006, Gooren confirma a pesquisa como base para o conceito de que a transexualidade seria uma "desordem" de diferenciação sexual do cérebro dimórfico. Dick Swaab (2004) concorda.

Em 2008, uma região com propriedades similares àquelas do NLET em relação à transexualidade foi descoberta por Garcia-Falgueras e Swaab: o terceiro núcleo intersticial do hipotálamo anterior (designado em inglês pela sigla INAH3), parte da área pré-óptica. Para o estudo foi adotado o mesmo método de controle para uso de hormônio visto em Zhoy et al. (1995) e Kruijver et al. (2000). As diferenças encontradas foram ainda mais pronunciadas que no NLET; os homens controle apresentaram em média um volume 1.9 vez maior e 2.3 vezes mais neurônios que as mulheres controle e, novamente, independentemente da exposição a hormônio, transexuais mpf tinham resultados correspondentes aos das mulheres e fpm, correspondentes aos dos homens.

Enquanto a resolução de tomografias de Imagem por Ressonância Magnética (IRM), em geral, são bem claras, núcleos independentes não são visíveis devido à falta de contraste entre os tipos de tecido neurológicos. Sendo assim, imagens de MRI não mostram estruturas detalhadas como o NLET e o INAH3; estudos do NLET foram efetuados pela bissecção post mortem do cérebro.

Ainda assim, o IRM permite o estudo de estruturas maiores do cérebro com relativa facilidade. No estudo de Luders et al. (2009), foram observadas IRMs de transexuais mpf que ainda não haviam começado o tratamento hormonal. Apesar de suas concentrações regionais de massa cinzenta serem mais similares às de homens que de mulheres, notou-se um volume significantemente maior de massa cinzenta no putâmen em comparação aos homens. Dessa forma, concluiu-se que a transexualidade estava associada a padrões cerebrais distintos.

Outro fator foi estudado em um grupo de transexuais fpm que ainda não haviam tomado hormônios: valores fracionários de anisotropia para matéria branca nas partes medial e posterior do fascículo longitudinal superior (FLS) direito, no fórceps menor e no trato corticoespinhal. Rametti et al. (2010) descobriram que, em comparação a mulheres controle, trans fpm apresentaram maiores valores fracionários de anisotropia na parte posterior do FLS direito, no forceps menor e no trato corticoespinhal. Comparados a homens controle, os trans fpm apresentaram apenas valores fracionários de anisotropia menores no trato corticoespinhal.

Hulshoff Pol et al. (2006) estudaram o volume bruto do cérebro de pessoas que passaram pelo tratamento hormonal. Eles descobriram que o volume total do cérebro de um indivíduo muda em direção ao tamanho do sexo para o qual se transiciona durante o tratamento. Assim, concluíram que as descobertas sugerem que, ao longo da vida, os hormônios produzidos pelas gônadas são essenciais para manter certos aspectos sexuais específicos no cérebro humano. Contudo, o estudo não explica as diferenciações encontradas em pessoas transexuais que ainda não haviam começado a tomar hormônios.

Em 2013, um estudo baseado em publicações prévias e pesquisas conduzidas na ocasião apresentou dados interessantes referentes à transexualidade em gêmeos. Descobriram que em 39 pares de gêmeos masculinos monozigóticos, 13 (33%) deles se identificavam como transexuais (ambos os gêmeos). O mesmo foi encontrado em 8 de 25 pares de gêmeas (22,5%). Mas apenas 1 par entre 38 gêmeos dizigóticos (2.6%) se identifica como transexual (também, ambos os gêmeos). A porcentagem significante de transexualidade ocorrendo com ambos os gêmeos monozigóticos e a aparente falta de correspondência no caso dos dizigóticos, criados na mesma família ao mesmo tempo, reforça a teoria de que a identidade sexual seja influenciada pela genética.

Para se explicar as descobertas acima mencionadas, os mecanismos comumente citados são a exposição pré-natal ao andrógeno ou a falta dela, ou ainda pouca sensitividade aos andrógenos pré-natais. Schneider, Pickel e Stalla (2006) encontraram uma correlação entre o raio digital (média entre comprimento dos dedos, um marcador geralmente aceito para indicar exposição pré-natal ao andrógeno) e a transexualidade mpf. Trans mpf apresentam maior raio digital que homens controle e sua medida é comparável à de mulheres controle (indicando, portanto, que elas não teriam sido expostas ao andrógeno pré-natal).

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Fontes (em inglês):

E quem é você para discutir comigo?

Meu amigo, Thiago Soares (a.k.a. T. Angel), trouxe a seu blog uma discussão que ainda me choca pelo nível de "apelação" do qual certas pessoas lançam mão quando tentamos questioná-las. Isso, na verdade, é uma rotina no universo das redes sociais - e, a bem da verdade, em qualquer situação na qual precisamos dialogar com um indivíduo que se considera autoridade.

Primeiramente, a postagem na qual se deu a discussão trata de um apontamento sobre termos preconceituosos e discriminatórios que não devem ser usados quando nos referimos a travestis. Sabemos, travestis são pessoas que têm, diariamente, seus direitos negados, ainda que, pela Constituição Federal, devam ser tratadas como todo e qualquer cidadão brasileiro.

Segundo a C.F., temos, logo em seu início:
TÍTULO I
Dos Princípios Fundamentais
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Eu, você, as travestis, pessoas transexuais, homossexuais, negros, pobres, os fuzileiros navais, somos todos regidos pela mesma Constituição. Ninguém tem o direito de humilhar ninguém, e usar termos pejorativos para se referir a uma pessoa é uma violência simbólica.

Aceitar a IDENTIDADE de uma pessoa é dar a ela o mínimo de dignidade para que viva, em seu dia-a-dia, gozando de um respeito que ela nem mesmo deveria exigir; o respeito deveria ser concedido a ela automaticamente, como um direito de todo e qualquer cidadão, repito. Isso não tem relação alguma com a laicidade do Estado, diga-se de passagem, pois não estamos tratando de religião, nem mesmo de doutrina, mas de um fato. Há estudos médicos que comprovam fatores biológicos envolvidos na condição da pessoa trans.





E eis que, além de tornar claro seu desrespeito para com um grupo de cidadãs, o indivíduo lança mão de seu status social: "Eu sou cabo do corpo de fuzileiros navais e incluo nas minhas piadas a classe que eu quiser. [...] Quem é VC pra dizer o que se configura homofobia ou qualquer outro tipo de palavra que vcs têm inventado pra se vitimizarem [sic]? [...]". Posteriormente, ainda procura a ajuda de um advogado que não se manifesta na discussão, chamando-o de "dr."...

Está aqui um caso claro da demagogia em que o sujeito procura conduzir a discussão usando de uma ferramenta intimidatória. Dizem que é preciso que os respeitemos para que sejamos também respeitados, mas o desrespeito parte justamente deles.

Infelizmente, é esse tipo de discurso que com frequência inibe denúncias por discriminação e má conduta principalmente em se tratando de atos cometidos por oficiais.

Não são apenas os indivíduos que precisam mudar seu comportamento, aliás. As instituições também necessitam rever a abordagem de assuntos que envolvem o tratamento de grupos minoritários. É preciso, ainda, que tomemos consciência do seguinte: as instituições existem para SERVIR o povo e não o contrário.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A banalidade do mal e o vazio de pensamento


Mesmo não conhecendo a obra de Hannah Arendt, é provável que todos estamos mais ou menos familiarizados com o termo “banalidade do mal”. Essa expressão foi cunhada pela filósofa em seu livro Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963 com base nos relatos de Arendt para o jornal The New Yorker, a respeito do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann.

Eichmann teria sido responsável pela eficiente logística que levou milhares de pessoas ao extermínio durante a 2ª Guerra Mundial, tendo organizado o sistema de identificação e transporte dos indivíduos aos campos de concentração espalhados pela Alemanha.

Julgado em 1961, em Israel, por crimes contra a Humanidade, genocídio de judeus e por pertencer a uma organização com fins criminosos, Eichmann se declarou inocente, mas foi condenado por todas as acusações e enforcado no ano seguinte.

A análise de Arendt daquele indivíduo revela que ele não apresentava nenhum histórico de violência ou mesmo antissemitismo, além de não mostrar características de ser alguém doente ou com transtornos de personalidade.

Como oficial do Partido Nazista, Eichmann agiu segundo o que acreditava ser seu dever, cumprindo ordens superiores. Movido pelo desejo de ser bem-sucedido em sua carreira profissional, ele simplesmente cumpria as ordens sem questioná-las, com o devido zelo e eficiência. Para ele, não havia a questão moral de estar cometendo crimes, uma vez que naquele Estado de exceção o extermínio fazia parte das regras – um Estado no qual o “mal” era algo banal.

Assim, para a filósofa, o mal não é uma categoria ontológica, natural, com a qual alguém nasce ou que faça parte da essência de um sujeito; é, antes, algo político e histórico, que se manifesta onde encontra espaço institucional para isso e é produzido pelos próprios seres humanos. No tempo e espaço em que o mal é permitido e sancionado, a violência se torna algo trivial, correspondendo ao “vazio de pensamento” (outra expressão cunhada por Arendt na obra). Em suma, não se pensa sobre o ato violento cometido, por ser esse tipo de comportamento banal.

Atendo-nos ao Brasil, podemos fazer analogias diversas com situações nas quais a “banalidade do mal” se faz presente, fruto de vazios do pensamento provocados por uma cultura em que a violência é apresentada como solução para a violência, uma vez que essa reação não requer abertura para o outro – trata-se da solução ideal oferecida às personalidades autoritárias.

Temos, por exemplo, na Polícia, um caso muito semelhante ao dos oficiais nazistas: agem apenas cumprindo ordens. Nas ocupações das escolas por estudantes em São Paulo, a Polícia Militar foi filmada e fotografada agredindo adolescentes e agindo com a mesma truculência da qual lança mão para apreender um criminoso. Cumpriu com seu trabalho dentro de uma instituição que permite, sanciona e até estimula a violência

Quando trataram os estudantes lançando mão de abuso de poder e de força física, é bem provável que não estivessem se preocupando com o bem estar daqueles jovens e que acreditassem estar fazendo seu trabalho com eficiência. Não há espaço para subjetividade quando se cumprem ordens - nem para o senso lógico de que aqueles alunos eram fisicamente menos fortes que os policiais.




Em uma sociedade na qual o próprio Estado é violento, o governo é violento e os líderes apresentam discursos que estimulam a violência, é de se esperar que a população seja também violenta.

A escolha de um (ou mais) inimigos seria fator a justificar a violência, como se apenas o espancamento, o linchamento, o extermínio dos grupos considerados inimigos solucionassem o problema da desigualdade – ou melhor, da existência do outro. As pessoas se voltam para o inimigo em surtos de histeria coletiva como os que presenciamos nas últimas manifestações pró-impeachment quando os chamados “cidadãos de bem” se deparam com indivíduos os quais eles não enxergam como sujeitos, mas como males que precisam ser eliminados da sociedade – leia-se, aqueles que não pertencem aos grupos dominantes.


Podemos até dizer que o “vazio de pensamento” demonstrado por essas pessoas que agem dentro do grupo é voluntário, uma vez que não se deseja o esclarecimento – como já fui obrigada a ouvir diversas vezes, quando tentava explicar racionalmente algum movimento social: “não quero saber de Marx”; “o que vem de Marx eu nem leio”; “saber disto não me interessa”. 

Há uma vontade de se permanecer ignorante, de não se abrir para explicações e reflexões que, em outro contexto, seriam óbvias. A principal atitude tomada por esses “cidadãos de bem” refletem, na verdade, um ataque pronto, sem ter havido, antes, uma ação à qual seja preciso revidar. Afinal, a possibilidade de se abrirem para qualquer racionalização diferente daquela já pronta em suas mentes traz consigo a ameaça da desconstrução.