domingo, 30 de agosto de 2015

De argumentações (ou "Só porque é sua opinião não significa que eu não possa contesta-la")


O poderoso escudo da opinião vem sendo evocado ferozmente nas discussões pela internet afora. Com ares de cartada final, sem precisar levar a cabo qualquer argumento, a derradeira fala –  “É minha opinião!” – surge como encerramento, com sua ilusão de que, ali, foi dado um verdadeiro xeque-mate. Se é a minha opinião, você não tem o direito de contestá-la.

Mas há um problema e, eu diria, até certa ingenuidade por parte de quem lança essa cartada. Afinal, a verdadeira opinião diz respeito ao gosto pessoal, a algo que não pode ser verificado factualmente por ser, bem, opinião. Quando a pessoa faz uma afirmação errada e prontamente a classifica como opinião, o que ela está fazendo é tirar uma conclusão com base em informações limitadas e/ou inverídicas. Em outras palavras: o fato de você achar que é sua opinião não a isenta de estar absolutamente errada no sentido mais primário do termo. E aí, se você se apega a isso como opinião, não significa também que eu deva respeita-lo por isso, nem que eu deva deixar de contestar suas ideias – principalmente se sua própria opinião for desrespeitosa (e, pior ainda, se você repetir o clichê de “respeitar para ser respeitado").

Por exemplo: eu posso defender a abolição de rótulos porque não gosto do uso deles e, portanto, prefiro não usa-los. É minha opinião. Porém, quando eu digo que rótulos não importam, eu estou afirmando um equívoco, uma vez que é verificável o fato de que rótulos não só importam como definem, em nossa sociedade, inclusões e exclusões diversas.

Se eu acredito, equivocadamente, que rótulos não importam – apesar de todas as provas que vão de encontro a essa crença –, eu estaria, além do mais, traindo minha própria fala a partir do momento que eu decidir usar um rótulo. Ora, se o rótulo não importa, então por que eu iria usá-lo? É ainda pior quando, além dessa opinião mal informada, eu opto pelo uso de um rótulo de uma forma que ignora seu conceito e suas implicações sociais.

Um exemplo prático acontece quando eu coloco drag queens e travestis dentro do rótulo de “transexuais”. O fato de eu defender a abolição de rótulos ou de não gostar deles não significa que essa colocação não possa estar errada, além de expor uma clara falta de informação. 

Para quem acompanha a questão LGBT em suas múltiplas faces, estamos testemunhando um embate ferrenho entre ativistas transgênero e drag queens, desde 2013, pela forma como o senso comum vem associando essas categorias de forma negativa e generalizada. Esse tipo de situação é ainda pior quando o erro é cometido por alguém do meio LGBT, como uma pessoa homossexual que se supõe ativista, pois revela, ainda, uma negligência no que diz respeito ao tratamento do assunto.

Se um indivíduo heterossexual defende o uso errado da terminologia, sua conclusão está embasada no erro anterior, propagado pelo indivíduo que deveria ter conhecimento das questões LGBT, mas que, convenientemente, prefere não lhes dar a devida atenção.

Mantendo-me na linha de pensamento da rotulação, acredito que, por mais que ela trabalhe a favor de uma segregação, não se pode negar que, politicamente, há uma necessidade de se definir quem se é. Em outras palavras, para que exponhamos nossas demandas, precisamos, antes, definir quem somos e nossas motivações. Nesse sentido, a separação entre sexualidade e identidade de gênero é feita porque as demandas de homossexuais e bissexuais não são as mesmas de transgêneros, transexuais e travestis. 

A percepção de uma pessoa que se identifica como homossexual certamente não é a mesma de alguém que se identifica como trans, apesar de ambas as identidades se depararem, em suas vidas, com pressões sociais diversas.

Portanto, se eu uso minha visão de homossexual para dizer a uma pessoa trans como eu acho que ela deve se sentir eu estou, novamente, utilizando-me de uma concepção limitada e equivocada para expor uma suposta opinião.


Como Jef Rouner, eu também passo mais tempo discutindo nas redes sociais do que poderia ser saudável mental e fisicamente para mim. Com frequência, o tempo da minha vida que perco em discussões que vão para um caminho literalmente estúpido poderia muito bem ser gasto com textos como este, em que tenho tempo para embasar meu ponto de vista sem ter de me preocupar com uma resposta imediata. 

Obviamente, quando meu ego é ferido a nível pessoal, eu simplesmente me esqueço de minhas motivações e da minha capacidade de ser melhor debatedora, independentemente da minha formação.


Cometo o erro de expor essa formação como validação do meu argumento quando sinto que a cartada da opinião é lançada juntamente a uma tentativa de diminuição do conhecimento ou da personalidade da pessoa. 

Normalmente, não gosto de falar em narrativas pessoais (erro que já cometi demais no passado) nem em posições individuais que não tenham relação com o tema discutido. Ao mesmo tempo, não consigo deixar passar o fato de que, enquanto uns se esforçam continuamente para adquirir conhecimento da maneira como podem, há os que preferem insultar o outro, prontamente, e, não raro, mandar a pessoa “ir estudar” sem que, antes, tenham eles mesmos estudado.

sábado, 29 de agosto de 2015

Todas as trans finíssimas: meme ou problema social?


Na internet tudo acontece de uma hora para outra e, do nada, uma nova frase ou expressão de repente é usada por todos - mesmo os que não sabem de sua origem.
Depois do "eu quero é close", "5 minutos de beleza" etc., a expressão do momento é "todas as trans finíssimas fumando maconha", título de um vídeo que parece ter sido gravado pela mesma pessoa, ao que tudo indica, uma travesti ou mulher trans que decidiu gravar as amigas na noite.

Para mim, a graça do vídeo está no bom humor com que as próprias mulheres se mostram, mesmo em uma situação que retrata a marginalização trans: aquelas pessoas estão ali se prostituindo.

No Brasil, a maioria das travestis e mulheres trans não encontram outra saída diante da exclusão a não ser ir para as ruas se prostituir, uma vez que não têm nem mesmo suas identidades sociais respeitadas e se veem juridicamente impedidas de ter carteira assinada ou serviço médico decente simplesmente porque seus corpos não estão em conformidade com seus documentos - e, para mudar os documentos, um processo longo e ardiloso, é preciso, antes mudar o corpo e apresentar laudos médicos...

As travestis que são, com frequência, rejeitadas pela família e pela comunidade em que vivem, expulsas de casa e completamente minadas de seu direito à cidadania chegam a tomar atitudes extremas para moldar o próprio corpo, aplicando silicone industrial, fazendo cirurgia em clínicas clandestinas....

Quando homossexuais reproduzem essa fala das "trans finíssimas" eles contribuem ainda mais para uma invisibilização da mulher trans, uma vez que se apropriam da voz dessas pessoas marginalizadas apenas para fazer piada. Nesse sentido, a real situação apresentada pelo vídeo ganha ares de mera brincadeira, e deixa de ser reconhecida como resultado de um problema social.

Uma confusão frequente entre o senso comum é a noção de que drag queens - homens, em sua maioria gays, que se vestem de mulheres - são mulheres trans. Contudo, a prática drag é voltada para o entretenimento, e sua crítica aos papéis de gênero está calcada na imitação de um ideal de feminilidade que é, por si só, artificial. Pode ser que uma mulher trans tenha se tornado drag queen para experimentar com o feminino antes de se definir como trans, e que encontre na prática uma arte libertadora.

No entanto, em termos gerais, o homem que se veste de mulher para fins artísticos não passa pela mesma experiência que a mulher que, tendo sido designada como homem desde seu nascimento, toma a decisão de modificar seu corpo para expressar sua identidade feminina em todos os momentos de sua vida.

Se, por um lado, é triste notar que algumas drags chegam a reproduzir discursos transfóbicos, por outro seria importante que pudesse haver um esforço conjunto para maior conscientização. A sigla do movimento deixou, há muito, de ser a excludente "GLS" para tentar abarcar um número maior de pessoas marginalizadas por conta de sua sexualidade e/ou expressão de gênero... Mas, infelizmente, a adoção de uma nomenclatura como "LGBT" não significa a automática mudança de atitudes.

A letra "T", na sigla, representa pessoas trans, incluindo, aí, travestis e transexuais, entre outras tantas expressões de gênero. São essas as "trans finíssimas" com as quais temos que nos unir e sobre as quais devemos falar, devemos abrir caminho para as vozes "T" - e não achar que a eliminação de rótulos vai simplesmente promover uma união que, na verdade, seria apenas de fachada.


Aproveitando o tema, segue também uma fala importantíssima da trans ativista Daniela Andrade que expõe a problemática das apropriações de imagens de trans e travestis apenas como memes:

Quando é para fazer milhares de memes da Vanessão, fazer remix da travesti semi analfabeta na delegacia, transformar em hino o bordão "se isso é estar na pior, o que é estar bem né?", amar as mulheres trans e travestis fumando maconha e dizendo pra todas que são trans finíssimas, aí o povo lembra exaustivamente de travesti e transexual, inclusive os gays.
Mas quando a gente vai falar de políticas públicas para travestis e transexuais, de gente morrendo numa fila do SUS à espera de uma cirurgia, de gente tentando o suicídio sem que os governos dos estados e o governo federal se lembrem que essa população precisa de hormônios, de cirurgia de remoção de silicone industrial, de próteses, de gente obrigada a se prostituir, de gente que foi expulsa da escola ainda no fundamental dado todo o preconceito que precisou enfrentar, que foi expulsa de casa, de quem se cirurgiou e não existe ginecologista ou urologista que as atendam, do judiciário exigindo que nos cirurgiemos para mudar nossos documentos. 
Nesse momento deixa de ser interessante falar de travesti e transexual, e passamos a escutar o cantar dos grilos como resposta à pergunta: o que vocês vão fazer para melhorar esse quadro?
Fora lembrar da gente sempre como palhaças, o que mais?

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Sobre Reinaldo Azevedo e Laerte

Mais uma vez, Reinaldo Azevedo prova que não entendeu nada.
Usando de uma “argumentação” recheada de insultos e ofensas pessoais, ele demonstra não estar disposto a diálogo algum, uma vez que qualquer ideia que discorde da sua é “estupidez”.
Em sua coluna, no dia 24 de agosto, começou a série de insultos disfarçadas de argumentação com uma charge de Laerte. 


Nela, a cartunista sugere como a recente manifestação pedindo o impeachment de Dilma estava permeada por hipocrisias e falsas simetrias, na imagem de “cidadãos de bem” que, entre selfies com a Polícia Militar e discursos esdrúxulos, não raro pediam uma intervenção militar para “salvar o país”.

Um panorama interessante dos protestos poder ser visto no vídeo abaixo:


Por alguma ironia do destino, membros dessa mesma PM são suspeitos de ter cometido uma chacina em Osasco – e, creem alguns, fazerem parte de mais um grupo de extermínio (sabemos, não é o primeiro na história da PM). E o que está na tirinha é justamente a representação dessa ironia.

Diga-se de passagem, a ação da PM em Minas Gerais, em protesto deflagrado apenas alguns dias antes das manifestações contra o governo, foi bastante diferente: uma amostra de como a polícia trata cidadãos de categorias “inferiores”.

Ademais, interpreto a charge de Laerte como uma analogia ao trabalho da Polícia Militar como instituição violenta e nada humanizada, cujo histórico de atuação incita mais medo que sensação de segurança na população, principalmente em se tratando do cidadão negro e morador de periferia. Para quem se interessa por conhecer o que está por trás da ação dessa instituição tão estimada por Azevedo, sugiro a leitura de uma recente entrevista concedida por um ex-policial militar condenado por crimes que cometeu, em parceria com colegas de trabalho, enquanto integrava a PM.


Reinaldo Azevedo discorda desse ponto de vista que partilho com Laerte, mas para demonstrar o quão contrário é a essa perspectiva, chama a cartunista de “baranga”, “horrenda”, “detestável”, “farsante”, entre outras coisas.

Traz para a discussão, ainda, a expressão de gênero de Laerte, relacionando-a com sua visão política.
Quando, em 2012, a presença de Laerte no banheiro feminino de um estabelecimento incomodou uma mulher, a velha problemática da não diferenciação entre gênero e sexualidade e o determinismo biológico, como sempre, foram usadas como justificativas para mostrar o “erro” da cartunista.

Nesse caso, Laerte questionou: “Como é que elas se sentiriam com uma lésbica dentro do banheiro?”. Ora, a pertinência dessa pergunta vem do fato de que sua expressão feminina não dita sua sexualidade e que a preocupação com a presença de “mulheres não biológicas” no banheiro é normalmente motivada por associações com a sexualidade. 

Quando a pessoa acha errado que “um homem vestido de mulher” frequente o banheiro feminino seu medo é fundado na possibilidade desse “homem” tirar proveito das mulheres que estão no recinto. No entanto, uma lésbica também teria a oportunidade de tirar proveito da situação, tal como “um homem vestido de mulher” que sente atração por mulheres.

O que Reinaldo falha em perceber é que o reconhecimento da identidade de gênero vem da necessidade de aceitação social das pessoas trans, uma vez que a presença de um indivíduo transgênero tanto no banheiro masculino como no feminino causaria desconforto e polêmica. O mínimo que se pode fazer a esse respeito é reconhecer que a pessoa transgênero tem o direito de usar o banheiro de acordo com sua expressão de gênero. 

Se Reinaldo diz, ironizando, que para Laerte, o fato de “querer” alguma coisa transforma isso num direito, o contrário também pode ser dito: o fato de Reinaldo “não querer” alguma coisa parece transformar isso, para ele, numa falta de direito do outro.

Independente da crença de Reinaldo no determinismo biológico que se utiliza unicamente dos genitais para identificar o gênero de uma pessoa, não podemos nos esquecer de que a transgeneridade existe e que sua crescente visibilidade demonstra a necessidade de reconhecimento e validação social – e para os mais apegados à biologia, há uma série de estudos que comprovam, biologicamente, a condição dessas pessoas.

Do alto de sua adequação à heteronormatividade conservadora, Reinaldo comete as mesmas generalizações que criticou Laerte por cometer – com a grande diferença de que essa generalização, usada para efeitos humorísticos, leva à reflexão e não se gaba de ser detentora da verdade. Fosse uma generalização feita em charge para criticar pessoas com tendências esquerdistas que apoiam Dilma, certamente Reinaldo aplaudiria.

Sabiamente, Laerte usou do humor como resposta às provocações do colunista conservador e obteve uma réplica um tanto quanto “sem graça” – afinal, Reinaldo é desses que faz questão de dar a última palavra, nem que seja para pedir o fim do debate.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Direitos humanos são só para humanos direitos?

(tirinha de André Dahmer)

Moro num país tropical, ungido pelo Senhor, bonito por natureza, mas poluído e desmatado, enfrentando plena crise hídrica. Em fevereiro, o carnaval vem com mais casos de abuso sexual, muitos não relatados. Vivo num país em que não confiamos nos governantes e temos medo da polícia.

Não temos quem nos proteja da violência. Desconfiamos da honestidade. Não entendemos de economia, nem de política. Nossa ignorância, muitas vezes, é voluntária – ou paga. Só enxergamos a corrupção e o erro do outro. Aqui ganha quem grita mais. Mas ainda temos heróis, na TV.
A palavra de ordem é “intolerância”. Não se tolera o diferente porque é ele o culpado de todos os problemas. É ele que incomoda, a minoria.

Ainda não chegamos a um acordo sobre o que seria a liberdade de expressão. Apenas sabemos que é seguro vestir a máscara da opinião, ainda que ela represente uma violação dos direitos do outro.

Na madrugada de 20 de junho de 2015, Laura Vermont, de 18 anos, foi agredida por cinco homens. Estava a pé, depois de ter sido colocada para fora de um carro – segundo relatos, ela e outra amiga haviam brigado com o casal que estava no carro e Laura puxou um estilete. Podemos dizer, sim, que Laura não era inocente. Deve ter perdido sua inocência muito cedo, essa é a verdade.

O que aconteceu na Avenida Nordestina, zona leste de São Paulo, não teve relação com a briga no carro. Não sabemos se foi Laura quem primeiro deu atenção aos sujeitos que a espancaram. Ou se apenas respondeu a provocações.

Como a maior parte das travestis, Laura se prostituía. Era mais uma que a sociedade deixara sem saída, sem escolhas. Aprendeu a sobreviver e a se defender como podia. Afinal, soube desde cedo que não teria seus direitos garantidos pelo Estado, e que não teria a proteção policial nem a segurança a qual sujeitos têm direito. Ela não era sujeito, era abjeto, habitava uma zona de exclusão que a sociedade se recusa a legitimar e a abrigar.

Não à toa, Laura foi assassinada por Policiais Militares. Estes podem exercer a violência de forma legalizada e têm o aplauso de uma multidão toda vez que rasgam as páginas da Constituição Federal em que é assegurado o direito à vida; são congratulados sempre que ignoram a existência de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A ação tão exemplar e eficiente da PM, inclusive, inspira as pessoas de bem, corretas, a agirem para ajudar no combate ao crime. Agora, deixam marginais amarrados a postes como uma forma de ajudar à justiça. Aliás, não somente ajudam, como também substituem o papel do judiciário; julgam por si mesmos. Pisam em Mateus 7:1, mas por uma boa causa.



A parcialidade do povo se revela justamente na ideia propagada de que apenas os “cidadãos de bem” têm direito à dignidade. Prezam pelo seu interesse sem querer admitir seus privilégios. O cidadão de bem não quer ouvir argumentos, não precisa deles, pois tem suas frases prontas, cunhadas para a repetição; é assim que ganha discussões no grito. Para o cidadão de bem, "bandido bom é bandido morto", porque faltaram "umas boas porradas quando era moleque" e agora que virou ladrão, não tem mais o que fazer. Para o cidadão de bem, "todo traveco só quer caçar confusão", porque "se tivesse apanhado quando era criança não tinha virado viadinho". 

O cidadão de bem está sempre alerta. Está sempre querendo reparar problemas na sociedade. Ele está disposto a usar força necessária para tal. Ele bate em panela e em professor com a mesma intensidade. Ele enxerga na força policial a salvação da família tradicional. E no deputado/pastor a sustentação de seus interesses. E os políticos/pastores já ocupam alguns cargos no executivo também, quem sabe um dia chegam a presidência. O cidadão de bem bate palma pra terceirização. E para o confisco da previdência.
Entre os ídolos do cidadão de bem está Jair Bolsonaro, defensor de que gays demonstrando afeto publicamente sejam espancados, praticante de nepotismo de longa data, acusado nos idos de 1987 de planejar explodir várias bombas na Vila Militar de Agulhas Negras.


 Nessas circunstâncias, eu tiro apenas uma conclusão: ainda bem que não estou do lado do bem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O que mais te choca de verdade? (ou "A crucificação não é apenas encenada")

Desta vez não se tratou de uma encenação. Viviany Beleboni foi agredida ao ser reconhecida na rua por um sujeito que, segundo ela relatou em vídeo, disse que ela não era Deus e tentou esfaqueá-la.

O fanatismo demonstrado por muitos, desde que a transexual apareceu crucificada em um carro na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo em junho deste ano, é preocupante porque demonstra uma falta de senso crítico atrelada a uma idolatria cega à religião. Foi esse mesmo fanatismo que levou à agressão de um grupo de candomblecistas, em que Kailane Santos, de apenas 11 anos de idade, foi atingida na cabeça por uma pedra jogada pelos intolerantes.

Ávidos em criticar a heresia alheia, indivíduos que cometem tais atos parecem não ter noção de que estão, eles mesmos, indo de encontro aos ensinamentos bíblicos que dizem seguir com tanta devoção (já falei sobre o oportunismo e moralismo desses líderes religiosos e seus seguidores aqui e aqui também).



Sua religião, em vez de torna-los pessoas compreensivas, que pregam o amor e são empáticas ao sofrimento das minorias, os leva a crer que o “outro” – aquele de quem deveriam ter piedade e com o qual deveriam ser, no mínimo, tolerantes – deve ser prontamente eliminado. Trata-se da aceitação de um autoritarismo que usa a religião como justificativa para o cumprimento de seus interesses.

Enquanto os que creem nos ensinamentos de seus respectivos chefes religiosos se esforçam para cumprir cada uma de suas ordens, os sujeitos excluídos sentem o medo constante de serem perseguidos como resultado desse cumprimento. Em um estado cego ou de transe para com a “arrebatação” que é pregada nesses templos – cuidadosamente ambientados para que cada sujeito ali presente seja contagiado com o “poder da glória” em toda parte de seu corpo – o público não é capaz de perceber que seus gritos e clamores satisfazem o desejo de uma pessoa – do pastor, do pregador – e não do Senhor que tem seu nome apropriado.

Com essa perseguição do diferente, do “inimigo”, do bode expiatório que dessa vez assumiu a forma de Viviany Beleboni encenando a crucificação, fieis acreditam estar sendo bons seguidores, bons soldados.

Como se não bastasse, o medo de Viviany soma-se à descrença em uma polícia que nada fará para a proteger. Pelo contrário, a tratarão como culpada por seu ataque, como provocadora da ira de intolerantes, sendo a própria instituição policial incapaz de respeitar uma pessoa que não está de acordo com a matriz de inteligibilidade em que vivem.
A fala de Beleboni evidencia esse despreparo policial ao qual temos de nos sujeitar e a frustração de não poder ter esperança alguma de que a justiça seja feita: “Vai à delegacia? Para quê? Para me tratarem que nem um homem lá? Para rirem da tua cara e não dar em porra nenhuma?”

Enquanto às pessoas trans são negados os direitos mais básicos, aos conservadores a satisfação parece vir na forma de um congresso recheado pelos religiosos fundamentalistas que querem fazer de sua religião uma fundamentação para governar, passando por cima do princípio da laicidade do Estado e colocando sua fé evangélica acima de todas as outras. E, vale a pena repetir, o que usam de fundamento são suas próprias convicções e interesses mascarados de preceitos bíblicos, não os ensinamentos de Deus.

Do lado daqueles que se recusam a dialogar e a tentar compreender o que levou Viviany a se expor, crucificada, o ódio permanece o mesmo. Ao que parece, não interessa que ela tenha realizado essa performance para chamar a atenção para um sério problema do país que é a extrema violência a que pessoas LGBT, principalmente travestis, enfrentam diariamente; interessa que Jesus não pode ser representado por uma mulher trans em uma Parada do Orgulho LGBT, pois se trata de um exagero, de uma heresia, de uma provocação. Mas quando religiosos usam a imagem de Jesus por motivos mercadológicos, tudo bem. E quando usam o nome de Deus para esfaquear outro ser humano, tornam-se até heróis.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Pequenos detalhes que importam muito

(ilustração: Daniel Bueno, junho de 2013, para a Folha de S. Paulo)

Antes de expor minha crítica, gostaria de parabenizar a atitude da mãe Mariana Munhão e sua coragem ao dar um depoimento sobre a história do filho.

A pessoa que se assume trans passa por sofrimentos e conflitos imensuráveis, e o apoio da família e dos amigos é crucial para que se sintam bem no próprio corpo - um corpo que, de certa forma, os engana desde o nascimento. Somente o sujeito trans conhece e experiencia a própria dor. Mas quem o acompanha de perto, o ama e se preocupa com ele, também passa por seus dilemas, principalmente quando são indivíduos muito próximos, como os pais e os irmãos.

Às vezes, por mais que nos esforcemos para demonstrar apoio, compreensão e uma mente aberta, escorregamos em palavras e expressões que reforçam nosso apego ao chamado determinismo biológico - a crença de que a aparência de seus genitais e seu provável fenótipo é o que determina seu "sexo".

O relato de Mariana Munhão é profundo e serve como um ensinamento a muitos pais. Contudo, não posso deixar de expressar meu incômodo com a "frase de impacto" escolhida pela jornalista Gabriela Varella, que tomou o depoimento, para usar como chamada ao texto.

Da perspectiva de uma mãe, que viu o filho nascer com aspectos que fizeram com que ele fosse interpelado como "filha", é de se compreender que a sensação é a de uma garota que "virou" garoto - afinal, se desde o nascimento até a descoberta da transgeneridade Luan foi designado como menina, tem-se mesmo a impressão de uma pessoa se tornar outra, ao menos fisicamente.

Porém, quando a imprensa dá destaque a essa frase, "Não é fácil acordar e saber que sua filha virou filho", ela promove o reforço de uma ideia equivocada, que vem sendo propagada há muito e que é, em partes, responsável pela maneira discriminatória com que a sociedade enxerga as pessoas trans.
Ora, a filha não virou filho; "ela" sempre foi filho, "ela" se sentiu filho desde que pôde compreender sua identidade e compará-la com a de outras pessoas.

A pressão da família é a primeira de muitas enfrentadas pela pessoa trans. A pressão da escola, que evita tratar de questões de gênero e sexualidade - e agora ainda tem proteção de vereadores para que esses assuntos não sejam abordados -, vem em seguida e é quando o indivíduo pode realmente entender o que lhe espera na sociedade.

A criança cis - aquela que não questiona o gênero que lhe foi designado ao nascer - se certifica de sua identidade de gênero muito cedo e tem o aval dos pais para expressar como se sente, de acordo com essa identidade, pois está dentro das nossas expectativas sociais e culturais. A criança trans, por sua vez, é desencorajada pelo mesmo sistema, que a avalia como confusa - ou até como alguém com tendências homossexuais - e como incapaz de saber qual sua identidade de gênero tão cedo (veja bem, ninguém faz o mesmo questionamento a uma criança cis, aplaudida por reafirmar sua identidade diariamente).

Um estudo publicado em janeiro de 2015 mostrou que crianças trans demonstram suas identidades de gênero com a mesma consistência que crianças trans. Isso indica que, da mesma forma que a criança cis sabe qual é sua identidade de gênero, a criança trans também sabe de sua identidade "desviante", e elas são capazes de ter essa certeza desde os 5 anos de idade.

Ou seja, a criança trans não quer "virar" alguém do outro gênero, ela já se sente como alguém do outro gênero, mas precisa mostrar ao mundo esse sentimento e depende de outras pessoas - principalmente seus pais - para que ele seja validado. É a partir daí que entram as expressões de gênero associadas ao que é normalmente considerado masculino ou feminino. Para demonstrar sua transgeneridade, a criança passará a agir como as outras pessoas do gênero com o qual se identifica.

O problema do discurso que afirma que "é muito cedo para saber" tem a ver com uma ignorância voluntária por parte das pessoas, que usam essa justificativa somente quando o comportamento da criança não é o que se esperava. Afinal, para o garotão que nasceu com "o saco roxo" e adora ir para o colo de mulheres, nunca vai ser "muito cedo para saber" que ele é um macho heterossexual!

terça-feira, 4 de agosto de 2015

De jornalismos, escritores e ideais


Durante os anos em que cursei Letras, cheguei a ouvir mais de uma vez a lenda de que “todo aluno de Letras é um jornalista frustrado”. Muita gente pensa assim porque há, realmente, um número grande de pessoas no curso de Letras que prestaram vestibular para Comunicação – eu, inclusive. Ora, da minha parte, tentar Comunicação foi uma escolha lógica da parte de alguém que gosta de escrever e que pretende construir uma carreira com base em escrever... pelo mesmo motivo, tentei entrar em Letras em uma faculdade que ainda não disponibilizava o curso de Comunicação e, mesmo tendo a oportunidade de me transferir de um curso para outro, em Letras fiquei.

A bem da verdade, minha insatisfação com o curso que eu fiz só foi se dissipando por volta do 3º ou 4º período, quando descobri, aos poucos, que tinha muito mais possibilidades que me tornar uma professora. Aliás, admito ainda uma ironia: meu maior objetivo agora é o de me tornar uma professora.

Pode ser que se eu tivesse feito Jornalismo eu tivesse gostado do curso, tivesse me dado bem... Mas não descarto a possibilidade de que eu teria seguido um caminho parecido com o que realmente segui. Meu flerte com o jornalismo em geral sempre foi o mesmo. A diferença está na malícia textual que, a meu ver, adquiri com mais profundidade com os professores de Letras – o que pude atestar ao comparar minha visão com a de alunos que, formados em Jornalismo, decidiram fazer o mesmo mestrado em Teoria Literária e Crítica da Cultura que eu.
Sem contar uma implicância que desenvolvi com a falta de aulas de gramática no curso de Jornalismo, necessária porque até os professores universitários andam errando bobagens e até ensinando equívocos aos alunos (lembrando aqui que eu sou revisora, já li e consertei muitas dessas bobagens).

Além do mais, o clichê de que nem todos são iguais vai ser sempre válido, então, entre Jornalistas e “Literatas”, nem todos são iguais MESMO!

Em Letras, eu diria que aprendemos a ser leitores profissionais – e daí passamos a escrever caso seja de nossa vontade – ao passo que em Jornalismo aprendem, de fato, a ser escritores profissionais, preocupados com o público alvo e com a objetividade e todas essas características que os textos jornalísticos carregam. Como leitora profissional, pude chegar à conclusão de que não existe, absolutamente, um texto neutro ou imparcial, que seja puramente informativo; existem apenas o que são mais bem sucedidos em esconder a posição que tomam.

O que eu acredito que aconteça, então, é que, mais acostumados a escrever que a ler, jornalistas não aplicam sempre a noção de leitura crítica naquilo que veem como reportagem em potencial. Aqui, tomo emprestada a fala de uma amiga e jornalista, a Laís Menini:
“(...)amigos e colegas de profissão que continuam na labuta dos jornais, tvs, portais e rádios já disseram, mais de uma vez, que a geração de jornalistas “sabe tudo” que a modernidade trouxe até eles não quer nada com a dureza. Acha que é possível apurar uma notícia sem sair do lugar, lendo só comentários de Facebook. Também não está afim de sair da redação, quer resolver tudo por e-mail ou Whatsapp – e tudo isso ainda como estagiários”.
Sem conhecer a realidade dos jornalistas, eu, somente como leitora, tenho essa impressão também: hoje, porque é mais fácil fazer tudo à distância, muitos se tornam preguiçosos.

Sabemos que há jornalistas cientes da importância de uma investigação extensa e bem-feita, mas porque esse tipo de funcionário levaria mais tempo para escrever algo de qualidade que o sujeito do Facebook, capaz de lançar um furo jornalístico após a leitura de uma ou duas informações, sabemos também o motivo de muitas redações preferirem o último: é bem mais lucrativo, ou menos dispendioso, na verdade. Melhor ainda é quando a notícia se encaixa perfeitamente em fins políticos de difamação e crítica aos ideais contrários ao do veículo jornalístico em questão.

Diga-se de passagem, essa preferência pode explicar casos como o da jornalista da Veja, cujo número de plágios permanece ainda sem acordo entre os noticiários – 40? 60? 65? –, ou do furo de reportagem do Picasso no INSS, mostrado no brilhante documentário “O mercado de notícias”, de Jorge Furtado (segue, abaixo, o trecho a que me refiro).



A quantidade de informações disponíveis na internet é infinita e você pode fazer o teste: invente uma frase, qualquer frase, e ela pode se tornar um fato verificável pelo Google. Não é preciso muito esforço para se concluir que a maior parte do que é noticiado, se não é mentira, é algo incompleto e/ou distorcido. 

Convenhamos, não se pode esperar muito de jornalistas que têm como fonte principal blogs e redes sociais. A velocidade com que eles replicam notícias é inversamente proporcional ao tempo que passam pesquisando a fim de checar se o que é replicado é fato ou apenas boato. 

Como profissionais, só não conseguem ser piores que aqueles que se valem de documentos falsos – sim, estou falando de uma certa revista em específico – para produzir noticiários espetaculares, tendenciosos ao extremo e sem compromisso algum com a verdade – apesar de esse continuar a ser um dos slogans mais usados pelos meios de comunicação que se consideram jornalísticos.  

Fazendo um balanço geral da frustração, digo que a minha é de ter se tornado muito difícil um jornalismo de qualidade, independentemente da formação de quem o faça.