sábado, 18 de julho de 2015

Globo e, como sempre, o jornalismo tendencioso

Desta vez, a demonstração de um jornalismo irresponsável veio do programa "Bem Estar", em matéria sobre uso de brincos, riscos e cuidados, que foi ao ar na sexta-feira, 17 de julho.

Comecemos pelos "especialistas" consultados: uma dermatologista e um cirurgião plástico.
Primeiramente, são duas especialidades médicas que não vão lidar, diariamente, com o procedimento da perfuração, muito menos com tudo o que está por trás do uso de adornos corporais. Sabemos que as pessoas apenas procuram esses médicos em casos de problemas com suas perfurações.
Não é possível que, em momento algum, não passou pela cabeça dos produtores procurar o real especialista no assunto: o body piercer.

Felizmente, na página da matéria dois profissionais extremamente gabaritados já se manifestaram. Infelizmente, não acredito que quem deveria realmente ler seus comentários vão se dar ao trabalho.

O fato de que a dermatologista tem, entre suas funções, lidar com alergias da pele a substâncias diversas não significa, também, que ela entenda de todas as questões envolvidas na produção e distribuição de peças usadas para adornar o corpo. Basicamente, ela pode saber da presença de níquel em um "brinco", mas não acredito que ela tenha qualquer tipo de treinamento para identificar joias e peças específicas para serem aplicadas ao corpo - basta notar que, na matéria do programa, apenas mencionam que o recomendável para quem tem alergia é o "brinco de ouro".

A matéria falha em mencionar qualquer questão relativa à biocompatibilidade, que vai muito além do tal brinco de ouro - uma vez que a peça ser de ouro não é o mesmo que ela não apresentar níquel em quantidades variadas.

Outra falha IMENSA da matéria foi mostrar a perfuração da orelha de um recém nascido por um acupunturista de forma arriscada e negligente. Quando a câmera se aproxima dos brincos usados, notamos claramente que se trata de uma peça inapropriada, com hastes mal lixadas e propícias ao acúmulo de sujeira. Pior ainda, há uma gravação bem na haste do brinco, o último lugar em que deveria haver diferenças de relevo na superfície da peça! Ademais, o acupunturista faz a perfuração com uma luva de látex não estéril e usando um anestésico tópico.
Vale mencionar ainda que o médico usou o aparelho na orelha do recém nascido e não fez uma higienização da orelha posteriormente, aplicando direto a pomada anestésica. É claro que, em se tratando de um aparelho que é apenas passado na superfície da pele, não há necessidade de esterilização ou descarte, mas é preciso, no mínimo, fazer a desinfecção da "ponta" metálica, já que ela é passada na orelha de todos os pacientes, pelo visto.

Aliás, tenho também minhas dúvidas sobre a tal esterilização daquele brinco. Em momento algum foi mostrado o tal procedimento, e se o brinco foi esterilizado antes de ser levado ao consultório, pior ainda, pois foi colocado em uma superfície inadequada para ser filmado.



O correto, para a perfuração da orelha de um recém nascido, é não usar anestésico, pois há o risco de parte da pomada adentrar o furo quando passado o brinco. Ali, pode atrapalhar a irrigação do sangue na orelha e levar, em último caso, a uma necrose - sim, só por causa de uma pomada. Aliás, é por isso que A ANVISA PROÍBE O USO DE ANESTÉSICOS PARA FAZER PERFURAÇÕES.
Há um motivo bem claro para usarmos agulhas específicas para a perfuração e há um motivo ainda maior para o fato de perfuradores corporais terem abolido o uso desses "brincos com pontas afiadas", feitos para serem encaixados naquelas pistolas de perfuração, também abolidas há muito.

Ao fazer a perfuração na orelha da criança vemos também como o médico não está usando máscara, apenas luvas de látex não estéreis, para fazer o procedimento. Não há um campo protetor e o indivíduo está usando o mesmo jaleco com o qual deu a entrevista - o que me leva a pensar que ele deve ficar o dia inteiro com aquele jaleco de mangas compridas, sem se preocupar em arregaçar as mangas ou dobrá-las para que o tecido sujo não entre em contato com a perfuração.

Dá para notar ainda que, depois de toda a fala sobre pontos de perfuração e de estímulo na orelha, o médico nem mesmo fez a marcação na orelhinha do bebê...


O brinco tradicional acumula muita sujeira, a começar pelo formato da chamada "tarrachinha" que o prende. As pontas afiadas da haste são também perigosas, pois podem machucar o pescoço da criança no caso de hastes muito longas, além de seu formato ser outro fator a facilitar o acúmulo de sujeira. E, até onde sabemos, esses brincos são feitos de aço cirúrgico 316L, material até comum quando se fala em body piercing, mas que não é, absolutamente, o melhor em termos de biocompatibilidade - sim, meus queridos, a perfuração corporal avançou!

Outra questão que vale ressaltar é a "dica" dos médicos para cuidar dos "furos", ao falar que é preciso mexer no brinco constantemente - dizer isso é praticamente dar carta branca para que a pessoa fique rodando a peça no furo recente, com as mãos sujas, aumentando as chances de infecção. Qualquer folheto de estúdio contendo os cuidados que devem ser tomados é mais claro e melhor redigido. Pedir que a própria pessoa retire a peça ao notar sinais de infecção ou alergia é outro problema, pois ela não tem treinamento para retirar a peça sem ferir ainda mais o local ou deixá-lo exposto a mais contaminações.

Sobre o médico dizer que não se pode colocar um piercing na cartilagem, não consigo nem mesmo começar a dissertar. Há materiais que nos mostram, claramente, onde podemos fazer as perfurações sem atingir vasos sanguíneos e há posicionamentos apropriados para se aplicar as peças. Dizer que a orelha perfurada na cartilagem deve ficar como a de um lutador de jiu-jitsu é um exagero sem fim, pois o número de casos em que isso acontece é pequeno, pois a chamada "orelha de couve flor" é causada por contusões ou infecções graves, em casos extremos. Esse hematoma que ocorre no pavilhão auricular e leva ao crescimento de tecido fibroso é causado pelo rompimento de vasos e, repetimos, esse rompimento só vai ocorrer se a perfuração não for feita da maneira correta.

Eu tomei a liberdade de pegar duas fotos tiradas em cursos ministrados pelo piercer Snoopy, Ronaldo Sampaio, para ilustrar a forma correta de se proceder com a perfuração da orelha (aproveitem para comparar com o procedimento feito pelo médico e filmado pela Globo):



Se pudesse, ficaria horas falando a respeito dos problemas da matéria exibida em um programa que se diz voltado para a saúde e o bem estar. Vergonhosa como foi, mantenho a minha preocupação de que o adorno corporal seja vítima de maiores preconceitos e opiniões equivocadas que serão formados a partir das desinformações veiculadas pelo programa.

Para ler a nota de repúdio da Associação dos Tatuadores e Perfuradores do Brasil, clique aqui.