sábado, 28 de novembro de 2015

Oprimidos vs. oprimidos (ou "Sobre falsas simetrias")

Se tem uma coisa que as redes sociais vêm me mostrando é como nós podemos nos enganar a respeito de uma pessoa, acreditando que ela é inteligente e sensata quando, na verdade, é mais uma que se orgulha da própria ignorância. Tudo começou quando um conhecido meu compartilhou, no Facebook, a seguinte postagem:

Ora, ao se compartilhar um "texto" como esse, convenhamos, o clichê máximo de "respeitar para ser respeitado" deixa de valer, uma vez que a postagem em si desrespeita a pessoa que defende a construção social do gênero, diretamente. Logo, sentindo-me desrespeitada, eu não creio que o defensor da ideia propagada por essa postagem esteja em posição de exigir respeito quando ele mesmo é incapaz de respeitar o ponto de vista diferente. Há muitas formas de se discutir sobre o gênero e se colocar uma crença.

Essa "história" da nota de 5 reais usada como analogia para questões de gênero não é apenas absurda, é um verdadeiro tratado de estupidez, a começar por se tratar de um objeto inanimado desprovido de toda e qualquer subjetividade. O verbo "sentir" não revela, em si, a complexidade do pensamento humano e dos processos cerebrais pelos quais passamos ao longo de toda nossa vida. Basta dizer que nós não somos capazes nem mesmo de explicar nossos sentimentos inteiramente - seja em nível subjetivo, científico, médico, neurofisiológico...

Quando dizemos que o gênero é um construto social não estamos afirmando que uma pessoa "acorda se sentindo homem" ou "acorda se sentindo mulher". Desde o momento em que nascemos somos imersos em ideologias que vão ter um papel ativo e constante no desenvolvimento de nossa identidade. Nós, seres humanos, não existimos fora de uma sociedade e, mesmo como indivíduos, precisamos de um instrumento social - a língua - para determinar quem somos.

Quando o assunto é gênero NÃO EXISTE ESCOLHA, e por mais que afirmemos isso sujeitos como o que pensou na história da nota parecem não estar dispostos a entender. Sua preocupação é, antes, invalidar expressões de gênero que não estejam de acordo com a configuração corporal da pessoa - em outras palavras, desejam invalidar a transgeneridade. 

O que mais me decepciona, contudo, não é o fato de ainda existirem pessoas iludidas com pseudo-argumentos estúpidos como o desenvolvido na postagem acima. O que me decepciona é notar que indivíduos que não deveriam se alienar com esse tipo de discurso acabam convencidos e decidem compartilhá-lo como se fosse uma explicação válida e, pior ainda, julgam-se críticos e não se mostram capazes de enxergar a própria venda que os cega.

O sujeito que faz parte de uma subcultura como a da modificação corporal não deveria ser um alienado, simplesmente porque seu próprio estilo de vida o faz enxergar o mundo de maneira diferente - ou pelo menos é o mais provável de acontecer. Adeptos da modificação corporal se encaixam na categoria de "anormais", pois fogem dos padrões de maneira visível, sendo um tanto quanto inaceitável que se mantenham conservadores e moralistas.

Há muitas relações entre a modificação corporal e a noção de identidade que construímos para nós mesmos, relações que passam exatamente pelo "sentir". Afinal, eu moldo e modifico meu corpo para me sentir melhor.
Aqui, sim, eu posso fazer uma analogia interessante: pessoas transgênero passam por processos de modificação corporal a fim de se sentirem melhor nos corpos que habitam. 

Se eu modifico meu corpo por meio de tatuagens, piercings, implantes, escarificações e procedimentos experimentais, eu o faço para construir a mim mesmo. Eu assumo meu direito a meu próprio corpo para moldá-lo e tornar visível ao mundo quem eu sou e como me sinto. Se eu modifico meu corpo por meio de hormonização e cirurgias plásticas, tenho o mesmo objetivo. O que faço, tanto em um caso como em outro, é trabalhar com a biologia e o conhecimento médico para promover uma adequação do meu corpo à minha identidade, a forma como eu me enxergo.

Eu não escolho "ser diferente", ser "freak". Poderíamos, sim, optar por não modificar nosso corpo, mas como sabemos, a questão não é tão simples assim e muitos de nós não conseguiríamos viver se não tivéssemos nos modificado. Acho que aqui podemos perceber outra semelhança com a questão transgênero.

Particularmente, acho ainda mais estranho quando um indivíduo negro e adepto da modificação corporal se coloca numa posição de intolerância para com outros grupos oprimidos. De certa forma, parte de sua visão está baseada justamente na ignorância, no "não saber" mesmo, na falta de uma percepção mais aprofundada de questões sociais que ligam grupos excluídos de maneira tênue. O que me incomoda, aqui, não é a ignorância em si, mas o orgulho de ser ignorante e o desejo de permanecer ignorante. O cara que compartilhou esse texto diz que "não defende nada", sem perceber que o compartilhamento da postagem é, por si só, uma tomada de posição. Sem contar que a noção de "não defender nada" é incabível, pois sempre vamos defender a nós mesmos e o grupo ao qual pertencemos, consciente ou inconscientemente.

Uma coisa é não defender uma causa. Outra é se posicionar contra ela e querer se justificar dizendo que "não defende nada". Querer invalidar uma causa (a da chamada equivocadamente de "ideologia de gênero") é colocar-se contra ela, abertamente.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Terceiro sexo ou terceiro gênero?

A língua tem desses dilemas que me fazem refletir por horas e horas. Essas reflexões são geralmente provocadas por afirmações assertivas feitas por debatedores apegados em certezas e frases prontas. A última que li foi a de que “não existe terceiro sexo”, baseada na noção de que, na natureza, só há “macho” e “fêmea”.

De fato, há dois paradigmas na natureza como um todo, classificadores da reprodução sexuada, os quais se convencionou chamar de “macho” e “fêmea”. Contudo, o problema da afirmação de não existir um “terceiro sexo” já aparece quando pensamos em plantas hermafroditas – afinal, se elas não podem ser consideradas nem “macho” nem “fêmea”, é preciso que haja um terceiro termo para classifica-las de acordo com sua configuração sexual.

Mas voltemos aos seres humanos. Na concepção do dimorfismo sexual, o que nos permitiria dizer que um indivíduo é “macho” ou “fêmea” concentra-se, sobretudo, em cinco fatores específicos. São a presença ou ausência do cromossomo Y; o tipo de gônadashormônios sexuais; anatomia reprodutiva interna (como o útero nas “fêmeas”); e genitália externa.

[Precisamente aqui está uma questão no que se refere à fala do médico, ao nascimento, de atestar que o bebê é “menino” ou “menina”: raramente usa-se algum outro fator além da genitália externa para tal determinação, sendo os demais ignorados ou apenas levados em conta quando há algo que parece se diferenciar do paradigma.]

Pois bem, quando há cromossomia XX, ovários que produzirão estrógeno e progesterona, útero e uma vagina, diz-se que aquela pessoa é “fêmea”. Quando há cromossomia XY, testículos que produzirão testosterona e secretarão espermatozoides, próstata e um pênis, diz-se que aquela pessoa é “macho”. Esse é o paradigma do dimorfismo sexual.

Mas, como sabemos, há pessoas que nascem sem determinados órgãos internos, ou apresentam cromossomias variantes, ou ainda que nascem com genitálias ambíguas. Ora, se elas se encontram fora do paradigma, é correto chama-las de “macho” ou “fêmea”? Ou é preciso usar um termo diferenciado?


Os casos de pessoas intersexo são especialmente interessantes para se discutir o tema. Portanto, antes de tirar suas conclusões, peço que assista ao vídeo abaixo:


Se dizemos que não existe um "terceiro sexo" estamos eliminando a possibilidade de haver algo além do "macho" e da "fêmea" - sendo que a própria ciência já descobriu haver um continuum entre os extremos "macho" e "fêmea" que não permitem uma identificação plena de certos indivíduos no que diz respeito ao chamado "sexo biológico".

O mesmo pode ser dito em relação à manifestação do gênero. As identidades de gênero não precisam se restringir ao "masculino" e "feminino", pois comportam um espectro muito maior.