terça-feira, 30 de junho de 2015

Ideologia de gênero, a saga

Um comentário feito por um biólogo e que vem sendo compartilhado no Facebook está me preocupando, pois mostra que, realmente, não há esforço para compreender questões críticas que precisam ser colocadas em pauta.


É absolutamente estapafúrdio que as pessoas realmente acreditem que se quer ensinar, nas escolas, que “nascemos sem sexo”. Realmente, não tem lógica nem mesmo alguém achar que se queira ensinar isso aos alunos.

Acontece que a cromossomia do indivíduo se expressa em suas características biofisiológicas, mas não vai determinar muito do que nossa sociedade acredita ser inerente ao homem e à mulher. Cromossomos não são responsáveis por determinar que garotos gostam de azul e mulheres gostam de rosa. Cromossomos não são responsáveis por determinar que garotos vão gostar de carrinhos e super-heróis e que garotas vão gostar de bonecas Barbie e brincar de “casinha”.

Parece mais fácil, aos adultos, ignorar o fato de que NÓS é que impomos o gênero à criança antes mesmo de ela nascer, criando expectativas com base apenas no fato de ela ter um pênis ou uma vagina (ou cromossomia XX e XY, vá lá - apesar de que até isso ignoramos durante o nascimento, apenas tomando conhecimento da configuração cromossômica quando a pessoa começa a apresentar "distúrbios" em seu corpo).

Diga-se de passagem, até hoje não foi comprovado que os cromossomos exercem algum papel em determinar se o indivíduo é transgênero ou não. Pode ser que exista alguma influência. Pode ser que não. O que se sabe, porém, é que a transgeneridade tem fortes indícios biológicos, sendo a maior probabilidade a de que ocorra por ação hormonal ainda durante o desenvolvimento fetal.
Ora, se na escola ensinamos sobre outras cromossomias, como XXY, XXX, XYY, sobre hormônios, sobre reprodução sexuada, é de se pensar na possibilidade de colocar em pauta outras condições que vêm sendo estudadas e que não podem ser negadas.

Ademais, se à escola cabe ensinar e exigir o respeito, é aí que entra a discussão sobre as diferenças. E uma das diferenças que está em pauta é aquela colocada entre os gêneros, que impõe a submissão feminina, por exemplo. Não são os cromossomos que determinam que a mulher deva ser delicada, obediente e submissa, mas a cultura!

O ensino não passa apenas pela Ciência, mas também pela Sociologia e, acima de tudo, pelo respeito ao outro. Ensinar sobre as diferenças e sobre a “outridade” é, sim, função da escola, e para tratar desse tema ela precisa passar por questões de raça, gênero, classe sócio-econômica, etnia e todos os elementos que, ao serem construídos como identidades, acabam por passar também pela exclusão.

O homossexual também não é respeitado na escola, muito pelo contrário, é frequentemente condenado por apresentar um comportamento "diferente", fora das normas, o qual rapidamente associamos à sexualidade - algo que nós, adultos, ensinamos as crianças a fazerem antes mesmo de entrarem na escola. 

Não sei se vocês conseguem perceber a inconsistência na fala do biólogo, que prega que a escola deva ensinar o respeito às diferenças sem coloca-las em pauta a partir de exemplos reais – uma vez que a pessoa trans tem todo o direito de frequentar a escola e ser respeitada, reconhecida e legitimada. E prefiro não comentar sobre um biólogo que usa “homossexualismo”, termo que remete a uma doença ou ideologia/fanatismo (por conta do sufixo “-ismo”) e que não é mais usado pelo menos desde os anos 1990 (cientistas não devem se atualizar com frequência?!).

A importância de se tratar das questões de gênero são, inclusive, bem exemplificadas por essa garotinha:
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O Ministério da Saúde oferece um curso à distância, gratuito, sobre Saúde da População LGBT. Decidi me inscrever e conferir, e recomendo. É bastante didático e claro, passando pelos assuntos mais básicos em relação a gênero, sexualidade e sexo, até a questão dos tratamentos de saúde propriamente ditos. Para instruções de como se inscrever, é só acessar aqui.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Sobre novos paradigmas e o medo do desconhecido


O disparate entre as pesquisas e estudos sobre educação na academia e a prática educacional escolar ainda é grande. Obviamente, as razões são muitas e não pretendo enumera-las aqui, mas precisamos tratar de uma questão que acaba por reforçar a estagnação do ensino nas escolas: o medo do desconhecido.

A maioria dos professores que já se formaram há muito tempo têm mais confiança em seus instintos e experiências que em novas "teorias mirabolantes" e propostas que os obriguem a frequentar mais cursos de atualização - principalmente se ministrados por pessoas muito mais novas, afinal, o que eles sabem da vida?! De fato, abrir-se para mudanças não é algo que façamos pronta e facilmente. Devemos estar convencidos de que as mudanças serão positivas e que o esforço de sairmos de nossa zona de conforto poderá ser recompensado de alguma forma.

Na instituição escolar, em que experienciamos o contato social desde pequenos, aprendemos que a adaptação e a uniformização são benéficas para o andamento da organização. Sendo assim, devemos obedecer às regras que nos são colocadas visando a certa harmonia do ambiente. Aqueles que são capazes de obedecer - ou, pelo menos, de se conformar com a maior parte das regras - e "se misturar" passarão despercebidos, como indivíduos médios, "normais". Mas, sabemos, quando normas estão em jogo, há também exceções.

Outra questão importante é que os padrões de anos atrás não são, definitivamente, os padrões de hoje em dia, e a relação entre aluno e professor pode se tornar bastante problemática em se tratando do choque de gerações às quais pertencem. Nesse sentido, a pessoa recém formada pode oferecer novos insights e perspectivas para os educadores mais antigos e, eventualmente, tradicionalistas.

Quando nos colocamos a favor do ensino e discussão de questões de gênero nas escolas, não estamos falando apenas em homossexualidade e acreditar nisso é uma ingenuidade com base em generalizações grosseiras. Não se trata de "estimular homossexualismo [sic] e promiscuidade" e, honestamente, se ainda existem PROFESSORES que pensam assim, há algo de muito errado/atrasado na formação dessas pessoas.

Até hoje as escolas têm medo de tratar de sexo e sexualidade dentro da sala de aula de maneira aberta, fechando os olhos para o fato de que adolescentes (e, às vezes, pré-adolescentes) exercem sua sexualidade independente disso. Então, não interessa se a escola prefere fingir que seus alunos não são sexualmente ativos; o sexo acontece e acontecerá entre jovens tanto heterossexuais quanto homossexuais.

Ao tratar de desigualdades de gênero serão abordados assuntos como sexo consentido vs. forçado, prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, contracepção, comportamento sexual masculino vs. feminino, pressões sociais exercidas sobre os gêneros, entre tantos outros. A necessidade de falar de tudo isso?! Se você tirar alguns minutos para ler sobre a pesquisa realizada pelo Plan Brazil em 2014, você terá uma dimensão do quanto ainda é real a desigualdade entre gêneros em nossa sociedade, que dá mais liberdades ao gênero masculino desde a infância.
Aliás, tal desigualdade chega a ser ainda mais aterrorizante quando um dos maiores medos que atingem o cotidiano feminino, o estupro, torna-se real dentro da escola, que deveria oferecer proteção a todos.

No que diz respeito às identidades e expressões de gênero, o assunto se torna ainda mais delicado, pois nos é possível observar que muitos professores simplesmente confundem sexo, gênero e sexualidade, a ponto de não saberem lidar com alunos trans e, pior, desrespeitando-os diariamente.
A palavra "bullying" pode ser recente, mas as ofensas a homossexuais, garotos efeminados e pessoas trans dentro da escola é bastante antiga, não raro com o aval de professores - quando não são eles mesmos a fazer piadas.

A igreja, por sua vez, não deveria ter nada com as decisões de planos educacionais, por uma razão única: a escola deve comportar todas as religiões. Usar um argumento baseado em uma crença específica é amplamente discriminatório, além de infundado em termos tanto empíricos como científicos.
O poder que algumas religiões vêm adquirindo é prejudicial para a democracia. Seus líderes excluem do povo a liberdade e o poder de decidir, preferindo a doutrinação cega e o estímulo ao discurso de ódio - vide a agressividade com que religiosos, principalmente evangélicos, vêm tratando o "outro".

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Leituras recomendadas:



Sobre paradas, tensões e representações


O movimento LGBT como o conhecemos hoje tem uma história recente. Nos anos 1950 os grupos criados para advogar a favor dos gays – por muito tempo “gay” vem sendo usado como termo dominante para se referir a todos os LGBTs, uma simplificação um tanto quanto incômoda – se apoiavam em discursos de psicólogos, psiquiatras e sexólogos para deixar claro à sociedade que não podiam fazer nada a respeito de sua homossexualidade. A ideia era a de que a homossexualidade era uma espécie de patologia ou doença, sobre a qual homossexuais não tinham controle algum e da qual não se orgulhavam. Mas à parte desse “desvio”, eram sujeitos normais, que queriam ser aceitos pela sociedade.

O problema desse pensamento estava justamente no fato de não se orgulharem dessa “perversão” incontrolável, da qual, aparentemente, envergonhavam-se. Tinham um desejo de adequação e assimilação tão grandes que pareciam pedir desculpas por sua sexualidade.

Nos Estados Unidos, durante as décadas de 1950 e 60, o sistema legal/judiciário era abertamente contra o comportamento homossexual; à época, todos os estados americanos consideravam crime a “sodomia”, mesmo que o ato fosse consentido entre adultos – à exceção de Ilinois, que descriminalizou a sodomia em 1961.

A rebelião que ocorreu em Stonewall Inn, em Nova Iorque, no ano de 1969, não foi a primeira demonstração de descontentamento por parte de indivíduos LGBT, mas representou um marco na luta pelos direitos da comunidade.

Os últimos anos da década de 1960 viram o surgimento de diversos movimentos sociais, como o African American Civil Rights Movement (lutando pela igualdade de direitos civis para afro-americanos), as manifestações anti-guerra e a contracultura. Nesse espírito, indivíduos LGBT também passaram a lutar por sua legitimidade, recusando-se a permanecerem invisíveis.

O Greenwich Village, em Nova Iorque, era o bairro onde homossexuais e pessoas trans se reuniam à noite e o bar Stonewall Inn, que pertencia à máfia, era conhecido por sua popularidade entre os mais pobres e marginalizados da comunidade gay, como drag queens, transgêneros, jovens homens efeminados, sem-teto e michês. Portanto, era comum que acontecessem batidas policiais de surpresa no local. Mas em 1969 as tensões entre LGBTs e a polícia culminaram em uma série de protestos que se repetiram por várias noites seguidas, ficando conhecidos como Stonewall Riots (ou “Rebelião de Stonewall”).

Drags, crossdressers, transgêneros e gays efeminados participaram ativamente dos levantes. Naquela época, a ideia de transgeneridade não era difundida, e a verdade é que mulheres trans eram confundidas com drag queens - diz a lenda, foram as drag queens as primeiras a resistirem fisicamente à força policial em Stonewall (em entrevista para o documentário Pay it no Mind: Marsha P. Johnson, o escritor David Carter revela que algumas testemunhas oculares lhe contaram ter visto Marsha gritar "Eu tenho meus direitos civis!" e jogar um copo no espelho, dentro do Stonewall Inn, e foi justamente esse o ato a deflagrar os protestos).
Contudo, essas pessoas são hoje, com frequência, deixadas à margem do movimento LGBT, por desafiarem um padrão de “respeitabilidade” estabelecido inclusive para homossexuais, que devem ser “discretos” e permanecer “no armário” socialmente.

Ativistas importantes como Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, que se auto-proclamavam “transvestites” (palavra já obsoleta, usada para designar cross-dressers), usavam o termo “gay” para se referir à comunidade como um todo, de maneira inclusiva, uma vez que a luta de todos e todas, naquela época, focava-se no simples direito de existir e de ter controle sobre o próprio corpo.

Um ano após os motins, em 28 de junho de 1970, aconteceram as primeiras marchas do Orgulho Gay, nas cidades de Nova Iorque, Los Angeles, São Francisco e Chicago, em comemoração aos levantes. Posteriormente, as marchas foram organizadas em outras cidades e se espalharam pelo mundo, acontecendo preferencialmente em junho.

As paradas são um momento de celebração, uma comemoração daquele passo dado por pessoas excluídas da sociedade que eram espancadas e reprimidas por forças policiais simplesmente por estarem na rua. Se nos eventos de hoje as pessoas se beijam e expressam seu amor livremente, é porque foi preciso uma luta física para que isso pudesse acontecer.

No entanto, sempre que ocorrem as paradas sofremos também com o “fogo amigo”. Membros da comunidade LGBT que batem no peito para dizer que a parada não os representa, agarrando-se a argumentos moralistas e que expressam uma vergonha em relação ao movimento “gay” contemporâneo. Criticam a promiscuidade de participantes que vão à parada apenas para “fazer pegação”... Claro, em eventos e celebrações regados a música e álcool, é de se esperar que ocorram excessos. No caso das paradas não seria diferente.

Lembro-me do discurso de Clodovil Hernandez, ainda aplaudido por muitos, afirmando que não tinha orgulho de ser homossexual. Trata-se de um reforço da noção de que a homossexualidade é uma característica negativa do indivíduo; uma posição que sustenta a polarização que determina que ser heterossexual é bom e ser homossexual é ruim. Qualquer semelhança com o discurso dos grupos chamados homófilos, dos anos 1950, não é mera coincidência. Trata-se da ideia de “respeitar para ser respeitado”... um respeito aos outros que passa pela falta de respeito a si mesmo, na verdade, já que depende de uma internalização da vergonha que outros nos fazem sentir.


Não podemos nos esquecer, no entanto, que a demonstração de carinho em público é uma forma de protesto para nós, LGBTs, que ainda afrontamos o sistema com nossa simples existência, como é possível notar pelos discursos conservadores e fundamentalistas que andam se propagando. Não podemos nos dar ao luxo de reprimirmos uns aos outros dentro da comunidade, pois é isso que querem de nós os que são contra nós – a separação dos grupos, a desunião, as tensões.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

A ideologia por trás da ideologia de gênero

ideologia. s.f. P.ext. Sociologia. Organização de ideias fundamentadas por um determinado grupo social, caracterizando seus próprios interesses ou responsabilidades institucionais: ideologia cristã; ideologia fundamentalista; ideologia nazista etc. P.ext. Reunião das certezas pessoais de um indivíduo ou de um grupo de pessoas; percepções culturais, sociais, políticas etc: sua ideologia é fazer bem ao próximo. Política. Reunião das ideias características de um grupo, de um período, e que marcam um momento histórico: ideologia capitalista. 
Eu moro em São João del-Rei, cidade em que o catolicismo foi transformado em patrimônio juntamente com suas estonteantes igrejas.
Infelizmente, o povo aqui é como o povo no mundo todo: vive de boatos e especulações.
Tirando proveito disso, um vereador lançou a seguinte campanha...


Na descrição para a foto, lê-se:

#DigaNãoAIdeologiaDeGênero
Se a "Ideologia de Gênero" for aprovada, todas as nossas crianças deverão aprender que não são meninos ou meninas, e que precisam inventar um gênero para si mesmas. Para isso, receberão materiais didáticos destinados a deformarem sua identidade. E isso será obrigatório, por lei.Cabo Zanola apresentou uma emenda que RETIRA do plano municipal de educação esse termo.
Afinal, não basta o indivíduo defender seu ponto de vista em relação a um Plano que, aparentemente, ele não soube interpretar; ele precisa INVENTAR um argumento com base na distorção dos pensamentos teorizados pelos estudos de gênero.

Segundo o Cabo Zanola, se o Plano Municipal de Educação for aprovado, as crianças aprenderão que não existem "meninos" e "meninas", mas que elas podem/precisam "inventar" um gênero para si mesmas. (Toda vez que eu releio essa descrição eu tenho vontade de bater com a cabeça no teclado, porque me faltam palavras...)

Vamos por partes.
Primeiramente, quando refutamos a noção de que o gênero é algo natural não estamos negando sua existência. Estamos simplesmente tentando chamar a atenção para o fato de que o discurso que prega que "meninos são assim" e "meninas são assado" é uma construção cultural. Antes mesmo de o bebê nascer, os pais criam expectativas em torno do gênero que é determinado para ele. O médico olha, através do ultrassom, se existe ali um pênis ou não e é por esse dado que ele vai determinar o gênero do bebê. E essa determinação vai governar TODA A EXISTÊNCIA daquele indivíduo que ainda nem nasceu.

O problema é que, ao dizer que é "menino" ou "menina", o médico faz com que sejam geradas ideias a respeito da personalidade do bebê, de como ele deverá se comportar no futuro, de que vida ele deve levar a partir de seu nascimento. Só porque a criança nasce com um pênis há uma suposição de que ela vai gostar da cor azul, vai preferir brincar com carrinhos, vai se interessar por futebol e sentir atração por "meninas". O direito à individualidade, a construir sua própria identidade, é tirado da criança desde seu nascimento por conta de suposições constantemente reiteradas pela sociedade!

Imagine você se sua filha detesta usar saia e não gosta da cor rosa, prefere a vermelha. É justo que você a obrigue a usar uma saia rosa só porque a cultura afirma veementemente que garotas devem gostar de saia e de rosa?

Quando o seu filho chora, você procura conversar para saber o que aconteceu ou você imediatamente o manda "engolir o choro", porque "homem não chora"?!

Os estudos de gênero procuram demonstrar como o que temos por "identidade masculina" e "identidade feminina" não são "coisas que nascem com a gente"; são, na verdade, impostas, naturalizadas, essencializadas para que não as questionemos.

Essa imposição é perigosa, pois dita que um garoto deve ser viril, corajoso, racional, ao passo que uma garota deve ser delicada, vaidosa, sensível - e, pior ainda, submetida ao homem. Se, de alguma forma, a criança não segue essa "regra", ela sofre, dentro da escola, com a pressão para reprimir sua "diferença", por meio de piadas de mau gosto, insultos, brincadeiras violentas. O resultado disso? A taxa de suicídio entre pessoas LGBT é incrivelmente mais alta que a dos demais, por conta da forma como são ensinados a odiarem e a sentirem vergonha de si mesmos. Essas pessoas são constantemente lembradas, pelas instituições, de como seu jeito de ser é inaceitável e repreensível.

Cheguei a ouvir que, ao tratar de questões de gênero na escola estaríamos tirando a inocência das crianças... e que o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero abre caminho para que pervertidos entrem nos banheiros femininos (já falei disso aqui). Curioso é como quem vê as coisas pelo lado pervertido da história são apenas os que estão criticando... Nós, por outro lado, estamos enxergando formas de combater o "pensamento pervertido" lutando para se ensinar um senso crítico e dotar as crianças de poder de reflexão!

O Plano Municipal, preocupado com a forma como os preconceitos vêm sendo disseminados dentro das escolas - preconceitos de todas as vertentes, diga-se de passagem - e em como isso afeta a vida escolar e pessoal de cada aluno, propõe que algumas questões sejam abordadas dentro da sala de aula. Dentre essas questões, está  a do gênero enquanto construção social que obriga meninos e meninas a assumirem papéis socio-identitários pré-determinados.


Abaixo, segue o texto do PME; eu destaquei os trechos em que se trata da questão de gênero:
II – DIAGNÓSTICO:
O GT Educação Étnico-Racial e para Diversidade amparou seus estudos na lei nº 9.394/96 (LDB), em seus artigos 26 A e 79 B; na lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo da Educação Básica; na lei 11.645/08 que insere a obrigatoriedade da educação indígena no currículo da Educação Básica e nas resoluções CNE/CP1/04 e CNE/CP3/04. Além dos de diversos documentos de organismos internacionais de defesa dos direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
Novos cenários sociais, reflexões relativas ao Currículo e suas estruturas, assim como os processos de aprendizagem e construção do conhecimento tomaram conta dos debates nas últimas décadas do século XX e se consolidaram na atualidade evidenciando trabalhos e conquistas de uma gama de pesquisadores, estudiosos e movimentos sociais.
Todo esse relevante avanço na discussão de temáticas e reivindicações de abordagens que inserissem novos atores sociais e também os à margem da história, aliado ao processo profícuo de aumento do acesso de crianças e jovens às instituições escolares, não conseguiu acabar com o brutal desconhecimento da realidade vivida pelas comunidades negras e periféricas de nosso país. Estes estão presentes nas unidades de ensino, porém, não se reconhecem e não possuem nenhum sentimento de pertença às mesmas. “Crianças, adolescentes e jovens; negros e negras têm vivenciado um ambiente escolar inibidor e desfavorável ao seu sucesso, ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades.”
O grupo de trabalho considera de extrema importância a fundamentação do cotidiano da prática escolar para uma educação livre de preconceitos e de antigos vícios culturais. Considera que a escola deve direcionar-se para a edificação do sujeito na construção de bases educacionais que combatam o racismo a xenofobia e a homofobia.
Diante da ausência dessa temática no atual Plano de Educacional do nosso município, faz-se urgente inseri-la, para que possamos tratar com justiça e dignidade a história e os valores herdados do povo negro e demais grupos étnicos-culturais e minorias da sociedade brasileira..
III – DIRETRIZES
1 - Tratar a questão racial e as questões de gênero, etnias, dos grupos GLTB, de outros grupos socioculturais como conteúdos multidisciplinares durante o ano letivo.
2 - Reconhecer e valorizar as contribuições do povo negro, das mulheres, dos grupos, dos movimentos GLTB, dos indígenas e outros grupos socioculturais articulando ações entre a Educação e as Secretarias de Cultura e Esporte e Lazer.
3 - Abordar as situações de diversidade étnico-racial e a vida cotidiana nas salas de aula.
4- Combater as posturas etnocêntricas para desconstrução de estereótipos e preconceitos atribuídos aos grupos negros, homossexuais, mulheres, imigrantes e pessoas com deficiência.
5 - Investir na formação específica dos Professores quanto à temática da educação das relações étnico-raciais e o estudo de História e Cultura Afro-brasileira e cultura africana e Indígena seguindo o que reza as leis 10.639/03, 11.645/08 e as resoluções CNE/CP1/2004 e CNE/CP3/04.
6 - Recusar o uso de material pedagógico contendo imagens estereotipadas do negro, homossexuais, estrangeiros e pessoas com deficiência, como postura pedagógica voltada à desconstrução de atitudes preconceituosas e discriminatórias.
7 - Criar grupos de estudos permanentes sobre a temática, para a construção coletiva de alternativas pedagógicas com suporte de recursos didáticos adequados ao aperfeiçoamento e produção de materiais para formação e capacitação dos professores da Rede Municipal de Ensino.
IV – METAS:
1 - É fundamental fazer com que o estudo não seja reduzido a estudos esporádicos ou unidades didáticas isoladas. A questão racial deverá ser um tema tratado em todas as propostas de trabalho, projetos e unidades de estudo ao longo do ano letivo.
2 - Estudar a cultura afro-brasileira e das sociedades latino-americanas tratando-a com consciência e dignidade, enfatizando suas contribuições sociais, econômicas, culturais, políticas, intelectuais, experiências, estratégias e valores, potencializando atividades que promovam e evidenciem as contribuições da comunidade negra divinopolitana, das mulheres, dos demais grupos sociais minoritários e as heranças latino-americanas.
3 - Firmar parcerias com a sociedade civil organizada (ONGS, Movimento Negro e Associações de Bairro etc.) – parcerias que enriquecerão e ampliarão a atividade pedagógica no ambiente escolar, visto que, comunidade e escola devem construir em conjunto o conhecimento para valorização e edificação mútuas.
4 - Articular ações educativas e promover campanhas em parceria com os organismos de defesa dos direitos humanos; Promotoria da Infância e Juventude; Secretarias de Educação e com o Poder Legislativo.
5 - O Município deve investir na formação dos professores no trato deste tema. É fundamental o investimento na capacitação dos profissionais da Educação para garantir qualidade na execução das atividades previstas dentro dos ordenamentos jurídicos e educacionais, nos quais esta temática está inserida.
6 - É imprescindível banir do ambiente escolar qualquer texto, referências, discriminações; decorações, desenhos, qualificativos ou visões que construam ou fortaleçam imagens estereotipadas de negros e negras, mulheres, homossexuais, pessoas com deficiências e estrangeiros, assim como pessoas com deficiências.
7 - A criação de um grupo específico de estudos permanentes sobre a temática étnico-racial, diversidade e culturas latina-americanas é de suma importância para o enriquecimento dos saberes. Aos mesmos caberá o ofício de selecionar, sistematizar, analisar e contextualizar o que é relevante para o entendimento do processo histórico de reconstrução da memória das comunidades afro-brasileiras e fomentação de uma cultura livre de preconceitos e vícios culturais.
8 – Favorecer o desenvolvimento dos estudos da história e das culturas dos povos latino-americanos nas redes de ensino do município e a criação de grupos de estudos sobre os povos latinoamericanos
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Em tempo, sobre as crianças, a história do adorável Sam fala por si só:

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Para quem se interessou e deseja conhecer mais sobre as questões de gênero, sugiro as seguintes leituras:



sábado, 13 de junho de 2015

Manifesto minoritário


Desde pequenos somos forçados a notar quando somos diferentes. Na escola, qualquer que seja nossa diferença ela irá se sobressair. É, então, na escola que nos ensinam que a diferença é indesejável – e, apontando para ela como uma falha, como uma inconveniência, a escola nos pressiona a nos tornar invisíveis e a nos misturar entre os “iguais”.

Nesse primeiro contato com a sociedade somos colocados diante daquilo que enfrentaremos por toda uma vida e, enquanto “diferentes”, tomamos consciência de que provocamos o incômodo. A garota que não gosta de rosa, o garoto que não se interessa por futebol, a negra que não quer alisar o cabelo, a criança que não quer estar na moda, a criança que não pode estar na moda por conta de suas condições econômicas desfavorecidas, mas nem por isso se envergonha... qualquer um que não esteja disposto a se conformar é um incômodo porque questiona a validade das regras. Qualquer um que se recuse a ser “só mais um”, que se recuse a seguir os padrões impostos à sociedade, provoca ansiedade, porque questiona as formas de poder que se disfarçam de regras e padrões.

É crucial, para o conservador, que a mulher permaneça submissa, que o homossexual não tenha os mesmos direitos civis, que o transexual não tenha sua identidade de gênero reconhecida. Afinal, conferir visibilidade e poder de fala a essas pessoas é permitir que elas questionem justamente os princípios que alçaram ao poder os opressores.

Mulheres, negros, pobres, deficientes físicos ou mentais, homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros sabem que são diferentes; sabem que são o “outro” que não é dominante. Em algum momento de sua vida experimentarão alguma forma de discriminação, e normalmente esse momento chega quando entramos na escola.

Na escola, a importância de seguir as normas está em se adequar e aprender a não questionar, a ficar calado. Afinal, é menos trabalhoso e (bem) mais conveniente para os que administram um ambiente ou uma instituição que não se fomentem os discursos questionadores.

O aluno que insiste em perguntar “Por quê?” é um aluno armado com um pensamento crítico, e é importante que o professor demonstre ao estudante como manusear essa arma. Como professores, devemos deixar claro para o jovem que a neutralidade é um mito e que não existem verdades absolutas; e que se não somos capazes de escapar das ideologias, podemos, ao menos, questioná-las.

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Em São João del Rei, estamos enfrentando a pressão de um vereador conservador para se reformular o plano decenal de ensino; muitas outras cidades estão sofrendo com o mesmo problema. Enquanto educadores e representantes de minorias não podemos nos calar!

terça-feira, 9 de junho de 2015

O que te choca de verdade? - parte 2: as ameaças



Não me choca saber que a trans "crucificada" na Parada Gay está agora sendo, bem, crucificada. Ela relatou estar sofrendo ameaças de morte tanto pelas redes sociais como pelo telefone. E aqueles que a defendem nas redes provavelmente passarão a semana sendo insultados por isso.
Novamente, reina a impulsividade e a desonestidade intelectual do que não está interessado em interpretar o simbolismo colocado em pauta. Trata-se de uma metáfora poderosa para o sofrimento.

Vejo muitos homossexuais defenderem a noção de "respeitar para ser respeitado", que nesse caso denota "respeitar para ser socialmente aprovado". Primeiramente, ainda estou me esforçando para encontrar o desrespeito na imagem de Viviany crucificada... talvez se fosse um homem ali teria causado menos indignação. No entanto, esses mesmos que comentam sobre a necessidade de "respeito" são os primeiros a desrespeitar a própria comunidade LGBT, seja pela resignação à invisibilidade, seja pelo insulto direto ao criticar as "bichas pintosas".


Aliás, esse tipo de "respeito" ao outro me lembra uma das motivações que culminou no protesto em Stonewall, em 1969: à época, nos Estados Unidos, quem não estivesse usando pelo menos três peças de roupa que indicassem seu "gênero correto" (leia-se, seu "sexo biológico) poderia ser preso.

Aos que acreditam em manter a vida privada fora do âmbito político, devemos lembrar que não fomos nós, LGBTs, a trazermos gênero e sexualidade para a esfera pública. A união civil reconhecida juridicamente é um exemplo de que a suposta vida privada há muito se tornou, irremediavelmente, pública - daí a luta LGBT por ter sua união civil também validada pelo Estado.

No que diz respeito ao uso de um símbolo da fé cristã, devemos ter em mente que não há somente UMA fé cristã no mundo, e que essa diversidade de fés é motivo para guerras e crimes. Se um sujeito que acredita na Bíblia é discriminado em seu país por não seguir a fé dominante, estaria ele fazendo chacota ao protestar usando a cruz? Lembremos também que grupos radicais como o Estado Islâmico usam a crucificação como forma de execução até hoje! Nesse sentido, homossexuais podem, ainda, ser fisicamente, literalmente, crucificados.


A performance de Viviany não foi um escárnio, muito pelo contrário, foi extremamente séria. Fosse algo planejado para provocar diretamente aos cristãos, provavelmente adotaria uma estética diferente, no mínimo mais sarcástica.
Ademais, um indivíduo LGBT não seguir uma igreja específica não significa que ele não seja cristão, sem contar aqueles que ainda são católicos praticantes ou que encontraram conforto em outras religiões. Certamente, Viviany não tinha em mente ofender a essas pessoas, que estão ali, lutando ao seu lado.

Sobre muitos evangélicos (admito, não são todos), é preciso dizer ainda que praticam a soberba e ofendem à lei constantemente (mais especificamente ao Artigo 208 do Código Penal), invadindo terreiros e protestando abertamente contra religiões de matriz africana, até mesmo ameaçando de morte aqueles que se recusam a aceitar suas imposições disfarçadas de pregação. E, convenhamos, a bancada evangélica no congresso está repleta de processos e acusações e ainda assim se mantêm como líderes religiosos E políticos - num Estado que, constitucionalmente, é laico. Não é à toa que formam - e fazem questão de nomear - tantos inimigos, uma vez que a cada questionamento de suas ações por outros esse imenso poder é ameaçado.

Sou de uma família católica e, a meu ver, é muito mais desrespeitoso o que usa da simbologia cristã para lucrar ou para adquirir poder sobre outros. E vale a pena repetir: ninguém detém os direitos autorais da Bíblia e os símbolos ali mencionados podem ser usados por todos, como de fato o é.


Outra coisa: não há, em parte alguma da Bíblia, que o homossexual deva ser condenado à morte, simplesmente porque naquela época a homossexualidade, enquanto identidade, não existia. A prática de um homem deitar com outro homem era vista a partir de seu contexto e, por isso, era aceita em alguns casos e condenada em outros, como está explicado no vídeo abaixo.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O que te choca de verdade?


Na “Parada Gay” que aconteceu em 7 de junho de 2015 uma performance chamou a atenção; Viviany Beleboni, trans, apareceu crucificada em cima de um dos trios. A imagem forte de uma crucificação simboliza a violência, esta bastante física, a que muitas pessoas são submetidas por sua orientação sexual ou por sua expressão de gênero.

A analogia com Jesus Cristo é inteligente e uma importante chamada à reflexão, pois Cristo foi o grande defensor das minorias em seu tempo e foi condenado à morte justamente por ser uma pessoa transgressora e questionadora do status quo. A morte por crucificação foi uma punição comum na Roma Antiga, reservada aos que ofendiam a lei.

Ora, não podemos tomar Jesus como nosso representante, como nosso mártir, uma vez que ele é, por si só, um dos maiores mártires da humanidade? Evangélicos não detêm os direitos à imagem de Cristo, não detêm nem mesmo o direito de interpretação única da Bíblia. Muito pelo contrário, que eu saiba, eles são contra a adoração de ídolos e alguns deles fazem questão de chutar e quebrar imagens católicas apostólicas. Estavam eles preocupados com a ofensa que fizeram a uma outra religião? Provavelmente, não.

Dizer que a apropriação da imagem da pessoa crucificada é uma blasfêmia é condenar os próprios atos, uma vez que eles usam e abusam de tal imagem em suas propagandas. Não nos esqueçamos também que a mesma imagem já foi usada inúmeras vezes pela imprensa com objetivos supérfluos e não gerou tanta polêmica.

A diferença é que a igreja evangélica claramente tem no movimento LGBT o desafio às crenças, o desafio a ensinamentos pregados por um pastor – muitos deles nem mesmo estão na Bíblia, ou são distorcidos da forma como aparecem, descontextualizados para servirem ao objetivo de dominação dos fiéis.

Aos membros da comunidade LGBT que consideram a imagem de Viviany crucificada um desrespeito, sobressai a hipocrisia de tal argumento: para sermos respeitados teríamos de vestir uma máscara de respeitabilidade que nos permitisse viver no mundo como se fôssemos “iguais”. Mas, para a sociedade, não somos “iguais”. Não é justo que tenhamos de acolher o desrespeito na forma de uma adaptação normativa de comportamento, que está sempre nos impondo o que é certo e o que é errado, em vez de nos expressarmos de forma mais aberta.

Em tempo, imagens chocantes e ofensivas de verdade são as publicadas no Homofobia Mata. Os crimes denunciados ali, sim, são blasfêmias!

P.S.: Aos evangélicos que dizem praticamente deter o copyright da palavra divina, deixo aqui um trecho da Bíblia, Mateus 7:22-23
22 Muitos me dirão naquele dia: 'Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?'23 Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês que praticam o mal!
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Leituras sugeridas:

domingo, 7 de junho de 2015

Tatuados e preconceituosos - parte 2

Em setembro do ano passado eu publiquei aqui um texto sobre o preconceito dentro da própria comunidade de adeptos das modificações corporais. Acho extremamente irônico como muitas pessoas que sofrem com o preconceito não se importam em lutar contra ele e, não raro, acabam por propaga-lo ou reforça-lo ainda mais.

Desta vez, a manifestação de preconceito de um tatuador foi direcionada à comunidade LGBT. Novamente, trata-se de alguém sujeito à discriminação social que, nem por isso, preocupa-se em deixar de discriminar outros grupos.


Infelizmente, o comentário do tal tatuador não me surpreende. O meio dos adeptos à tatuagem tem uma certa reputação como machista, ainda que muito tenha mudado nos últimos anos. Não há muito tempo que tatuadoras eram tratadas com pouco respeito por profissionais e tatuados, e ainda acontece de indivíduos se recusarem a ser tatuados por mulheres, por incrível que pareça.

Outra questão sobre a qual gostaria de chamar a atenção está no teor sarcástico do comentário do tatuador - afinal, um grupo oprimido adquirir direitos não significa que o grupo opressor perderá direitos; trata-se apenas de se nivelar a situação. Quando a união civil homossexual não era permitida, a união civil heterossexual era um privilégio detido por um grupo; ao se permitir que o homossexual tenha o mesmo privilégio de heterossexuais, ambos os grupos passam a ter uma igualdade de direito no âmbito em questão.

No meio LGBT talvez o grupo representado por homens homossexuais tenha se tornado mais visível - a começar pelo próprio uso mais frequente do termo "gay", como em "Parada Gay" - e por essa razão lésbicas, bissexuais e transgêneros vêm procurando dar mais ênfase a suas respectivas vozes. Daí a chamada publicada pelo Portal Terra.

Ao questionar se o heterossexual ainda teria os mesmos direitos o tatuador simplesmente mostra como tendemos a enxergar nossos próprios umbigos. Ora, heterossexuais sempre tiveram seus direitos garantidos sem precisar lutar por eles e isso não vai mudar! Aquele que não tem o direito é que deve clamar por ele, na busca por se igualar, na medida do possível, ao opressor, em termos de "facilidade social".

Passemos, então, a outro grupo oprimido: o dos tatuados. Ainda temos de nos impor diante de situações específicas, por exemplo, no que diz respeito ao mercado de trabalho. Empresas e instituições governamentais que se recusam a empregar tatuados continuam a existir - elas nos negam o direito de trabalhar. Então não deveríamos lutar para garanti-lo? Imagine você se, ao perceber que uma instituição empregou alguns sujeitos tatuados, um "não-tatuado" começasse a questionar a empresa, perguntando se ela ainda estaria empregando pessoas sem tatuagem... Pois é, não há lógica nenhuma nisso. Mas é justamente essa linha de pensamento que deve ser empregada no comentário feito pelo tatuador na notícia sobre LGBTs.

Parece-me que as pessoas estão cada vez mais impulsivas. O imediatismo que se instalou em nossa cultura se instalou também em nossa fala... queremos tanto comentar, falar, marcar nossa "presença virtual" que não estamos dispostos a gastar um pouco de tempo na reflexão. As respostas devem ser cada vez mais imediatas e, por consequência, cada vez menos "pensadas".

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Livro: "A modificação corporal no Brasil: 1980-1990", por Thiago Soares


A modificação corporal no mundo existe desde que o ser humano existe. Trata-se de uma história múltipla, diversa e complexa, e conseguir desenvolver uma genealogia das práticas é uma tarefa que demanda tempo e dedicação extremos.

Em seu primeiro livro, Thiago Soares (fundador do site Frrrk Guys e do grupo de estudos GESMC) traça um perfil da modificação no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990, período em que muitas técnicas floresceram por todo o mundo, algumas um tanto quanto controversas, como os implantes, outras, já estabelecidas, encontraram mais adeptos e profissionais dispostos a experimentar com as possibilidades, como no caso da escarificação e do branding. Passando para os anos 2000, Thiago também apresenta o caso da pigmentação do globo ocular, a evolução das peças para body piercing e sua análise acaba não se restringindo apenas ao período delimitado pelo título da obra.

Tratando de diferentes perspectivas em diferentes contextos históricos, o autor expõe como a visão que temos do corpo foi sendo moldada por meio de discursos e ideologias por vezes impostas à sociedade. O resgate do primitivismo, em meados do século XX, foi um momento de mudança de paradigmas, levando a novas percepções, algumas bastante desafiadoras aos olhos da sociedade média.


A importância de um livro como esse, escrito de forma tão clara e objetiva – até didática, eu diria –, não está somente no reconhecimento de uma comunidade brasileira rica e ativa que se dedica à body mod com seriedade e afinco, mas também à abertura, para o público em geral, de um âmbito quase desconhecido envolvendo as modificações chamadas mais “extremas”. Até hoje, aqueles que optam por intervenções no próprio corpo são vistos como abjetos, como “loucos”, “inconsequentes”... caracterizados na maioria das vezes negativamente, são indivíduos julgados simplesmente por exercerem sua individualidade, seu direito de escolha. Por isso a necessidade de se discutir o tema é grande e, convenhamos, a publicação de uma obra como essa valida intelectual e academicamente a modificação corporal brasileira, principalmente sendo escrito por uma pessoa que experiencia no próprio corpo seu objeto de pesquisa – um passo que representa uma afirmação crucial, quem sabe, uma infiltração num meio acadêmico nem sempre receptivo a esse tema.

Recomendo a todos os interessados no tema e aos curiosos também! Para comprar, clique aqui.

[Nota (para a editora):] Por ossos do ofício, venho notando que muitos livros são publicados hoje em dia sem um trabalho cuidadoso de revisão (pergunto-me se há alguma revisão, na verdade). Várias vezes, ao ler um livro, começo a notar erros gramaticais que, apesar de corriqueiros quando escrevemos (afinal, escrevemos sem pensar em revisão nem em edição, trabalho que só será feito depois e que normalmente é realizado uma segunda vez pela editora), pode ser facilmente notado por um revisor, como trocar um ponto final por uma vírgula ou adicionar um verbo na oração – não é essa a função?!
Até os maiores professores precisam de alguém para revisar seus textos, por uma simples questão de distanciamento, e não consigo entender o motivo de algumas editoras estarem aparentemente dispensando a revisão.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Apelação interpretativa ou desonestidade intelectual?

A preguiça de interpretar ou de se informar não é novidade nas redes sociais. A internet e o excesso de informação editada fazem com que as pessoas tenham preguiça de pensar, de se informar adequadamente, facilitando que descarreguem suas opiniões equivocadas da maneira como bem entendem.

Em março, foram publicadas resoluções no Diário Oficial da União que garantem alguns direitos a pessoas transgênero. Essas pessoas passam a ter garantido, dentro das escolas e demais instituições de ensino, o uso do nome social e a possibilidade de frequentar os banheiros de acordo com suas respectivas identidades de gênero.

A notícia começou a se espalhar agora por conta de um texto repleto de equívocos publicado na página “Cabral arrependido”, que começa da seguinte forma:

Parece piada, achei mesmo que fosse piada, mas é real. Dilma lançou uma resolução que permite ao homossexual e aos transgêneros escolherem nas escolas e universidades, qual banheiro querem usar.

Sendo assim sua filha ou sua mulher será obrigada a usar o mesmo banheiro que um homem vestido de mulher, desde que ele alegue que se acha mulher também. Isso é um absurdo imoral e prova que o país está em um estado lastimável.

Deixando de lado os erros gramaticais, gostaria de focar apenas nas falácias argumentativas...
Claramente, o discurso do autor demonstra como ele não tem conhecimento de conceitos como sexualidade e identidade de gênero, estando alheio ainda à condição transexual ao dizer que “um homem vestido de mulher” seria um indivíduo afetado pelo projeto.

A homossexualidade é uma orientação sexual. Isso significa que indivíduos homossexuais se sentem atraídos por outros do mesmo gênero. Sendo assim, são homens que se atraem por homens e mulheres que se atraem por mulheres. Esses homens não apresentam desejo de “virar mulher”, nem essas mulheres apresentam desejo de “virar homem”, pois o que está em jogo aqui é o gênero pelo qual as pessoas se atraem, é o objeto de desejo. Dessa forma, homens gays e mulheres lésbicas continuarão, como sempre fizeram, usando respectivamente os banheiros masculino e feminino.

A transgeneridade é uma identidade de gênero que vai de encontro à do “sexo biológico”. Isso quer dizer que, se a pessoa nasceu com um pênis e foi, portanto, designada pelo médico como “menino”, ela sofrerá pelo fato de “ter mente feminina”. Trata-se da noção de “nascer no corpo errado”. Não há aqui nenhuma perversão ou questão sexual associada. Trata-se de alguém que, por se sentir num corpo inadequado, busca modificar esse corpo para que ele esteja em conformidade com sua auto-percepção, com sua mente. Não é “um homem vestido de mulher”, mas uma mulher que nasceu no corpo de um “homem”; essa pessoa deseja viver, a todo momento, como uma mulher, expressa-se como uma mulher, experiência a vida como uma mulher. Não se trata de uma simples alegação e, por isso mesmo, esses indivíduos passam por avaliações psicológicas e sentem a necessidade de se apresentarem, a todo momento, como pessoas do gênero com o qual se identificam.

Essa pessoa passa por um processo complexo de aceitação de si que só é ainda mais dificultado pela sociedade que não considera sua condição como legítima. A finalidade do tal projeto de lei é esta: LEGITIMAR A CONDIÇÃO TRANS.


No mais, banheiros públicos têm cabines justamente para que ninguém seja obrigado a se expor, e é certo que essas pessoas, cerceadas pelos valores heteronormativos, vão continuar a esconder seus corpos “diferenciados”.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

HIV, a continuidade dos preconceitos e a transmissão dolosa

Recentemente, espalhou-se pela internet a notícia – um tanto quanto tardia – sobre grupos que estariam promovendo táticas para espalhar propositalmente o vírus HIV. Considero a notícia tardia porque a prática existe há bastante tempo e, apesar de os jornais mencionarem comentários que chamaram a atenção no Facebook há três semanas, lembro-me de ter visto compartilhamentos com certa frequência sobre o tema desde o ano passado.

O estigma do vírus HIV e da aids é ainda grande e eventualmente ainda ouvimos que se trata de uma “doença gay”. No passado, essa perspectiva fez com que a infecção entre heterossexuais aumentasse exponencialmente, uma vez que muitos acreditavam não pertencer a grupos de risco, não precisando de proteção. Como resultado, segundo o Ministério da Saúde, desde o início dos registros de infecção pelo HIV no Brasil até o mês de junho de 2013, o número de heterossexuais contaminados por contato sexual foi 55,6% superior ao de homossexuais. Em outra pesquisa, divulgada na semana passada, foi revelado que, apesar de 94% dos brasileiros saberem da importância do uso da camisinha na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, 45% dos indivíduos sexualmente ativos não usaram camisinha em relações ocasionais em 2013, percentual que permanece estável desde 2004!

Até hoje, o número de homens heterossexuais no país infectados é maior que o de homossexuais, mas há uma questão preocupante: o número de homens homossexuais infectados, por ano, aumentou muito, enquanto o número de homens heterossexuais apresentou, consistentemente, índices pequenos.

Nesse sentido, o alarde promovido pela notícia da existência de grupos formados com o objetivo de infectar outros indivíduos merece atenção. A prática bareback tem seus adeptos e é considerada um fetiche, pior ainda, uma espécie de subcultura da qual fazem parte homens e mulheres, que costumam justificar o fato de não usarem camisinha por ela diminuir o prazer durante o ato.

Uma matéria publicada em 22 de fevereiro deste ano (2015) no Estadão descreve como funcionam os chamados “clubes do carimbo” (em inglês, fala-se em “stamp’s clubs”), sujeitos que atualmente se reúnem em blogs ou grupos no Facebook, adeptos do sexo bareback contaminado à procura de parceiros.

É importante ressaltar que o bareback em si não tem como objetivo a transmissão do vírus; trata-se de uma prática sexual sem o uso da camisinha. Muitos praticantes são, inclusive, contra a conversão de novos adeptos, exigindo exames que confirmem, antes, que o parceiro não sofra de nenhuma DST. Obviamente, isso não faz com que a aids não seja transmitida entre essas pessoas.

Porém, não são poucos os indivíduos soropositivos que praticam o sexo apenas sem camisinha, que se auto intitulam “vitaminados” e que têm realmente o objetivo de contaminar outras pessoas. No caso específico noticiado pelo Estadão, dois blogs foram pesquisados, em função de um aviso postado e compartilhado diversas vezes pelo Facebook. Uma das páginas foi removida, mas a outra, mantida por alguém que mora no Rio Grande do Sul, continua ativa e nos espaços reservados para os comentários acontecem discussões em geral sobre o assunto. Nesses ambientes virtuais são trocados endereços de e-mail e números de telefone, postadas fotos e anúncios, marcadas festas, orgias e alguns até chegam a sugerir a gravação de filmes amadores.

Em um blog mantido por um barebacker, há inclusive dicas detalhadas de como "sabotar" a camisinha, espetando-a várias vezes com um alfinete ainda embalada ou recortando a ponta do preservativo. Ao fim da postagem, o autor diz que oferece as dicas porque os leitores se interessam, o que não significa que ele pratique aquilo. Porém, sua página é repleta de "selos" contra o uso da camisinha, como os abaixo:


No .gif acima, o símbolo formado é aquele usado para indicar "risco biológico", muito comum em indústrias químicas e estabelecimentos médicos. Ele vem sendo usado no meio gay por homens soropositivos justamente para indicar a "contaminação".


Desde a década de 1990 há notícias esparsas a respeito da “roleta russa” em festas, nas quais pessoas se reúnem para fazer sexo, sem saber qual é a soropositiva – sabendo apenas que, na orgia, estará presente alguém contaminado pelo HIV, às vezes sendo mais de uma pessoa. Diga-se de passagem, há festas exclusivamente heterossexuais que seguem esse esquema também.

Aqui, entramos em uma outra discussão: um número crescente de diagnósticos ocorre entre mulheres mais velhas, que não usavam preservativo com o parceiro em suas relações estáveis. Sem saber se o parceiro havia frequentado ou ainda frequentava casas de prostituição, ou se a traiu em algum momento, a mulher ainda assim não se preocupava com a camisinha, seja por pressão do próprio parceiro ou por não se considerar como um grupo de risco. É provável que seus parceiros não soubessem de sua condição, descoberta apenas cinco ou dez anos depois – uma vez que o vírus pode permanecer incubado por mais de dez anos –, em alguma situação de vulnerabilidade, como de uma gripe persistente ou alguma doença que parece não se curar.

Mesmo entre jovens, recém-iniciados na vida sexual, ainda existem as garotas que cedem à pressão dos parceiros para não usar camisinha. Desde cedo elas estão sujeitas não apenas ao risco de contrair o vírus HIV, mas também outras doenças sexualmente transmissíveis.


Voltando aos próprios “clubes do carimbo”, pode ser que um grande número de “participantes” seja casado, ou mesmo façam sexo ocasionalmente com mulheres, sem lhes contar sobre serem “vitaminados”, nem se preocupar em usar preservativo. Durante o carnaval, as chances de espalharem o vírus aumenta a níveis assustadores!

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Tatuados e preconceituosos

"Preconceito é um juízo pré-concebido, que se manifesta numa atitude discriminatória, perante pessoas, crenças, sentimentos e tendências de comportamento.É uma ideia formada antecipadamente e que não tem fundamento sério." (www.significados.com.br)

"s.m. Opinião ou pensamento acerca de algo ou de alguém cujo teor é construído a partir de análises sem fundamentos, sendo preconcebidas sem conhecimento e/ou reflexão; prejulgamento.
Forma de pensamento na qual a pessoa chega a conclusões que entram em conflito com os fatos por tê-los prejulgado.
Repúdio demonstrado ou efetivado através de discriminação por grupos religiosos, pessoas, ideias; pode-se referir também à sexualidade, à raça, à nacionalidade etc; intolerância." (www.dicio.com.br)

Quando não gostamos de algo ou não concordamos com uma opinião é natural que queiramos justificar nossas divergências. Explicitar nosso gosto pessoal é algo que fazemos todos os dias, o tempo todo; alguns são apenas isso: gosto, preferência. Outros, no entanto, vêm acompanhados de explicações que só parecem fazer sentido para quem está falando. Há ainda os que vão além do gosto e explicitam um julgamento de valor,o qual não cabe à pessoa que expressa sua opinião fazer.

Pessoalmente, eu gosto de modificações corporais das mais variadas, mas não faria algumas em mim por não considerá-las esteticamente agradáveis a meus olhos. Não gosto, por exemplo, do aspecto das bochechas do Bodymoded Punky, em termos estéticos. Eu simplesmente não gosto do aspecto de bochechas muito alargadas. Ponto. Acabei de expressar a minha opinião. Contudo, isso não significa que eu o considere "doido", "estranho", "maluco", nem que eu ache que ele tenha "acabado com a própria vida se deformando assim", e nem que eu o deixe de achar atraente. Eu nem mesmo acho que ele se tenha deformado (no sentido negativo da palavra)!

Dito isso, deparei-me hoje com um vídeo de uma escarificação postado em um grupo dedicado à tatuagem, seguido de comentários bastante desagradáveis. O destaque estava no juízo de valor que as pessoas estavam fazendo de alguém que decide fazer uma escarificação ­ nas palavras de alguns, "mutilação", "aberração", "lesão corporal". Abaixo seguem alguns dos comentários:



A primeira pergunta que se passa na minha cabeça é: qual a diferença da tatuagem para a escarificação? Pois na tatuagem a pele é, como na escarificação, ferida, levando inclusive ao sangramento. Em geral, o corte, na escarificação, é feito apenas uma vez, ao passo que, na tatuagem, é preciso ferir a pele repetidas vezes. Mas, em suma, tanto uma prática quanto outra envolvem LESÃO. Sim, lesão da pele, do tecido, logo, lesão corporal. O conceito aqui é cabível desde que não seja contextualizado em âmbito jurídico.

Essa "aberração" que envolve o corte da pele foi usada por diversos povos, sendo uma opção relativamente comum na hora de se tatuar: primeiro, fazia-se o corte no formato do desenho; depois, cinzas eram esfregadas para que o desenho ficasse marcado na cor escura. Ora, então por que a escarificação não estaria relacionada ao mundo da tattoo?!

Se a tatuagem é arte, é história, é beleza e "isso aí" não o é, por que ambas as tradições caminham lado a lado em culturas tribais, sendo até mesmo misturadas para se obter os melhores resultados de ambas?
Até os anos de 1870, homens maori da Nova Zelândia gravavam tatuagens profundas por todo seu rosto. Padrões eram esculpidos na pele para criar cumes e sulcos paralelos, como desenhos esculpidos na madeira.

Os maori e outros povos do Oeste do Pacífico têm uma longa história de se tatuar. A palavra "tattoo", acredita-se, originou-se na Polinésia, de "tatau", termo que significa "marcar". Algumas das primeiras tatuagens eram cortes em que se esfregavam cinzas, para formar cicatrizes escurecidas.

Eu entendo que muitos considerem a visão de uma escarificação sendo feita algo agressivo, que remete à dor. Mas essa mesma visão é partilhada por muitos a respeito da tatuagem. E, sabemos, tatuados ainda enfrentam preconceito nos dias atuais. Ao que parece, enfrentar preconceito não significa estar sensibilizado para o preconceito sofrido pelo outro, nem estar isento de ser preconceituoso.

Curiosamente, muitos fãs de tatuagem consideram a escarificação um "masoquismo" (pergunto-me se de fato sabem o que é o masoquismo), como se a única razão para se fazer uma scar fosse o prazer em sentir dor ­ não é isto que muitos tatuados e perfurados também ouvem a respeito de seus adornos?!

A preguiça de se informar antes de opinar sobre qualquer coisa é generalizada; somos bombardeados com opiniões intolerantes por toda a internet. Por trás do preconceito de tatuados contra a prática da escarificação está a ignorância a respeito de uma história complexa que não se limita à realidade com a qual estão acostumados, das agulhas descartáveis em leves máquinas de alumínio capazes de trabalhar com a tinta quase que sem restrições. 
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Em função da falta de informação generalizada das pessoas que comentaram no vídeo, eu mesma decidi fazer uma pesquisa e apresentar, no grupo em que aconteceu a discussão, um texto sobre parte da história da escarificação, que você pode ler aqui: "Escarificação na África: tradição em declínio".

Sobre a questão do preconceito, sugiro a leitura de um texto da página Frrrk Guys: "Corpos modificados e o preconceito cotidiano na cidade".

terça-feira, 16 de setembro de 2014

João Antônio Donati, homofobia e a eterna luta contra o mal

Depois de muitos boatos veiculados inclusive por jornais considerados sérios, o caso do assassinato de João Antônio Donati aparentemente foi solucionado. Confessando o crime, Andrié Maicon Ferreira da Silva, um agricultor de 20 anos, nega que tenha havido qualquer conotação homofóbica. O suspeito disse à polícia que não é homossexual, mas que já havia se relacionado com outros homens e, como já sabemos, teve relações sexuais com o próprio João.

A fala do assassino suscita interpretações diversas, e, em se tratando de uma sociedade machista, em que a masculinidade é valorizada inclusive pelo papel "ativo" exercido na atividade sexual, como podemos refletir sobre a atitude do sujeito que confessou o crime?

Nada podemos afirmar sobre o que aconteceu para que a fúria do assassino fosse despertada, mas temos suas declarações, um tanto quanto familiares, sobre as quais podemos especular. Sim, não passam de especulações, mas importantes e necessárias.

A começar pelo sexo entre dois homens, um ato homossexual. Ora, se você pratica um ato homossexual, você pode ser : a) homossexual; b) bissexual; c) curioso. Uma vez que o indivíduo já se relacionara sexualmente com outros homens, sua curiosidade já havia sido sanada, o que me faz descartar a opção "c".

O outro ponto a ser especulado está no que o suspeito se recusou a fazer e que o levou a lutar contra João. Pela entrevista concedida, chamam a atenção as seguintes falas:
­
Ele queria fazê otros tipo de coisa lá, eu num aceitei... (sic)
O problema foi ele que quis fazê gracinha comigo... (sic)

Que tipos de "outras coisas" João poderia querer fazer, resultando na fúria de seu parceiro sexual que diz não ser gay? Será que João, após ter sido penetrado, quis, então, penetrar o parceiro? Será que ele pediu ao parceiro que fizesse sexo oral nele?

Não fosse essa entrevista, a questão da homofobia poderia ser esquecida no referido caso. Mas essas declarações podem chamar a atenção para uma homofobia velada que presenciamos dentro do próprio meio LGBT, que discrimina os homossexuais efeminados e os "passivos". Trata-se de um outro nível do "pânico homossexual*"; o pânico de ser taxado como efeminado e, consequentemente, como "passivo" está relacionado ao medo ter sua masculinidade negada. Como explica Daniel Borrillo,
Muitos homens que assumem um papel ativo na relação com outros homens não se consideram homossexuais (…). Mas não basta ser ativo, é preciso que a penetração não seja acompanhada de afeto, pois isso coloca em perigo a imagem de sua masculinidade. Eis então como, a partir de uma negação, vários homens, mesmo tendo relações homossexuais regulares, podem recusar toda e qualquer identidade gay e ser homofóbicos. O ódio serve à reestruturação de uma masculinidade frágil, que necessita se reafirmar por meio do desprezo dos outros-não-viris: o frouxo e a mulher (BORRILLO, 2001).
Conservadores continuam a afirmar que a homofobia é uma criação de ativistas LGBT visando à obtenção de "privilégios". Mas esse assassinato nos mostra como a homofobia pode estar presente até na mentalidade dos homossexuais, disfarçada em discursos como o de "se dar ao respeito", "ser discreto" etc.
A polícia descartou a homofobia como motivação para o crime, mas, aparentemente, o papel do vilão já está bem definido.

Ironicamente, se João não tivesse sido assassinado e a luta corporal contra seu assassino fosse vencida pela vítima, eu me pergunto se não estaríamos diante de uma acusação de estupro por parte do suspeito...

Entraríamos, então, em outra discussão bastante controversa, pautada na boa aparência física de João em confronto à má aparência de Andrié, que aparece nas fotografias com roupas sujas e apresenta uma fala pouco articulada.
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*Eve K. Sedgwick chama de "pânico homossexual" (1990, p. 182) um medo ao qual homens estão suscetíveis em contextos de relações compulsórias com outros homens, nas quais a proximidade gerada por laços como a amizade, a admiração ou a subordinação se separa de forma tênue do desejo homossexual.

**Link para notícia contendo o vídeo da entrevista de Andrié: Mais Goiás

sábado, 23 de agosto de 2014

Freak shows na TV


Convidado para vir ao Brasil pelo canal Bandeirantes, o alemão Joel Miggler, conhecido como Bodymoded Punky não deve ter imaginado que seria mostrado na TV como uma aberração quase bestial, sem ter nem mesmo a oportunidade de falar sobre si e sobre suas motivações enquanto adepto de modificações corporais consideradas extremas. De fato, o jovem chama a atenção até dentro da comunidade dos modificados, devido à escolha incomum de alargar as bochechas. Assim, é natural que sua imagem gere reações diversas, que vão de uma curiosidade genuína à incredulidade.

Pensando na televisão de hoje, estamos bem cientes de que o sensacionalismo é algo com o que somos obrigados a conviver diariamente, nessa guerra por audiência travada entre as emissoras. Nesse contexto, os conteúdos são produzidos muito mais para prender a atenção do público pelo maior tempo possível que propriamente para informar ou esclarecer. E é óbvio que, entre as possibilidades de se chocar e fascinar a audiência, está tudo aquilo que for considerado incomum, estranho, que "salta aos olhos" do homem médio imerso em seu cotidiano.

No século XIX, uma forma bastante popular de entretenimento com características semelhantes era o freak show, em que "aberrações" eram exibidas dentro de jaulas ou em picadeiros de circos. Homens tatuados dos pés à cabeça, mulheres com barba, indivíduos com deformidades congênitas, gêmeos siameses, anões, enfim, todos os anormais eram expostos como animais, como verdadeiras bestas, com o objetivo de atrair um grande número de visitantes - e, eventualmente, os apresentadores chegavam a desafiar o público a se aproximar e a tocar aquelas criaturas (qualquer semelhança com o fato de Luiz Bacci oferecer 50 reais à mulher que tivesse "coragem" de beijar o Bodymoded Punky não é mera coincidência).


 O filme Vénus Noire (no Brasil lançado como "Vênus Negra"; foto a seguir) retrata, com base em fatos reais, essa realidade que, hoje em dia, consideraríamos revoltante - falhando em perceber que isso ainda acontece atualmente, tendo apenas ganhado uma nova roupagem.

Em vez dos freak shows, agora temos programas como o "Tá na Tela", apresentado por Luiz Bacci e exibido pela Band. Ali, observamos os mesmos princípios de um show de aberrações serem colocados em prática: tirar proveito do incomum para atrair seus espectadores, sob a justificativa de se tratar de uma "curiosidade". Uma concepção semelhante está nas "coberturas jornalísticas" de convenções de tatuagem pelas emissoras populares; os supostos jornalistas já chegam no local procurando por aqueles com aparências mais extremas e chamativas. Uma vez que a tatuagem vem se popularizando, a preferência agora se volta para a exibição de indivíduos com implantes, línguas bifurcadas, eyeball tattoos, alargadores grandes etc.

De certa forma, olhar para o exótico, para o Outro, nos shows do século XIX, oferecia ao espectador um reforço da sua sensação de humanidade, de "normalidade", de pertencimento à civilização. Por se tratar de um período imperialista, em que países europeus colonizaram territórios na África e na Ásia, muitos dos freaks apresentados vinham justamente dessas terras colonizadas; eram considerados selvagens, bárbaros que, não tendo sido "treinados" para viver na civilização, precisavam ser contidos em jaulas ou controlados por seus "treinadores".


Nos dias de hoje, o que permanece é o estigma cultural de que a modificação do corpo é uma prática tribal, portanto bárbara, devido a essa associação inicial com rituais indígenas ou de tribos africanas. Num contexto urbano, o modificado seria um rebelde que rejeita a civilização, recusando-se a manter uma aparência dita "normal".

Atualmente, a ideia de se exibir um indivíduo que sofra de alguma grave condição médica que tenha resultado em deformidade física é prontamente condenada se feita nos moldes dos antigos freak shows ou da maneira como o Bodymoded Punky foi mostrado. Para essas pessoas, o palco agora deve ser montado com base no drama e na comoção.

Mas os modificados, por sua vez, escolheram ter uma aparência chamativa, ou seja, "deformaram-se" por vontade própria e conscientes do impacto que causariam. E ao que parece a mídia toma por lógico um desejo, por parte dessas pessoas, de chamar a atenção, de "aparecer" - afinal, não deve haver outra razão para que alguém decida "se mutilar" assim. A mensagem que nos é passada pelos veículos de comunicação não especializados, portanto, é a de que os indivíduos adeptos da modificação corporal são os novos deformados, prontos para servir de entretenimento ao homem comum.


A verdade é que em nenhum momento (talvez em toda a história!) a indústria do entretenimento mainstream pareceu ter a intenção de "jogar limpo", cegas pela possibilidade de aumentar seus números de espectadores.
No século XIX, muitos eram persuadidos a se apresentar sob a perspectiva de serem reconhecidos como performers, como verdadeiros artistas, de ganharem um bom dinheiro e viverem dignamente - já que a maioria, quando "descobertos" por donos de circos ou de shows itinerantes, encontravam-se em estado deplorável, em meio à miséria.

Hoje, alguns modificados e profissionais do ramo cedem seu direito de imagem sob a promessa de uma matéria idônea, de uma entrevista informativa, esperando se tratar de uma oportunidade de se mostrar ao público geral com seriedade, a fim de ajudar a diminuir o preconceito. Contudo, acabam se vendo dentro de um novo freak show, exibidos como criaturas bizarras. 
A expressão de Punky durante o programa nos conta tudo isso sem que tenha sido preciso dizer uma palavra. Trazido para se apresentar na TV brasileira, ele provavelmente esperava responder a perguntas sobre suas modificações; sobre como as decidiu fazer e por quais procedimentos passou; sobre como lidava com essas alterações do corpo no dia-a-dia e quais cuidados tomava... Em vez disso, foi exibido não só no palco, mas também em uma feira, com direito a um capuz preto que, retirado pelo apresentador, revelava a "aberração" que é seu rosto com bochechas alargadas.

Ora, a brincadeira, a piada, a "espetacularização" em resposta ao bizarro é uma reação mais adequada ao homem "comum" que a reflexão e a indagação crítica. Quando o bobo da corte era o responsável por entreter e fazer rir o monarca e seus súditos, o alvo da graça era justamente o diferente, o "ridículo". Tendo seu defeito apontado e ridicularizado pelo bobo, o diferente sentia-se pressionado a se adequar ou a esconder seu defeito a fim de se misturar ao restante da sociedade. De forma mais ou menos velada, o bobo da corte era o carrasco dos costumes.


Com roupagens menos óbvias, os bobos da corte se propagam no mundo contemporâneo em formatos variados. No entanto, sua função permanece: apontar para o anormal e retratá-lo como ridículo. Castigado, esse anormal é incentivado a perseguir a normalidade, a ser "como todo mundo".
O sensacionalismo, portanto, não é somente uma exibição do grotesco pela curiosidade, mas também uma forma de se reforçar as características negativas em busca de se certificar que aquele grotesco será mantido à margem, distante da normalidade conveniente.

Ver o diferente como louco reflete nossa própria necessidade de pertencer, de sermos aceitos pelo grupo majoritário ao qual chamamos de sociedade. Justamente por isso repreendemos o que se destaca - para evidenciar-lhe seu não pertencimento e, quem sabe, influenciá-lo a se ajustar.
Devemos nos lembrar, então, do abjeto, este que perturba a ordem por não estar em harmonia com a sociedade "uniforme", universalista. Pois é exatamente esse elemento perturbador que nos faz encarar nossa condição de sujeito e de ser humano.


Por vezes nos esquecemos de que aquele para quem apontamos, de quem rimos e a quem julgamos e repreendemos está nos fazendo encarar nossa própria humanidade - moldável, vulnerável e eternamente questionável.