quinta-feira, 14 de julho de 2016

ANTES DA CHEGADA DOS CRISTÃOS EUROPEUS, NATIVOS NORTE-AMERICANOS RECONHECIAM 5 GÊNEROS

Com a conversão forçada ao cristianismo, foi imposto também o sistema que só reconhece os gêneros masculino e feminino.


[Nota: O artigo original foi publicado no Blasting News, por mim, em 29 de junho. Esta é uma versão que revisei e ampliei, devido à grande repercussão do texto.]

Muitos conservadores continuam a insistir em uma "ideologia de gênero" que negaria a "natureza" humana ao afirmar que os gêneros são culturalmente construídos. Para eles, só existiriam dois gêneros, correspondentes aos sexos "masculino" e "feminino", algo que já estaria determinado por "Deus" antes do nascimento.
No entanto, a ideia restrita dos papéis de gênero como a conhecemos hoje, baseada no binário homem/mulher, apenas foi incorporada pelas tribos norte-americanas após a chegada dos europeus, com a imposição das crenças cristãs.
A visão diferenciada dos gêneros, que existia em muitas comunidades indígenas, não apenas na América do Norte, mostra como a cultura de um povo influencia os papéis de gênero e a maneira como enxergamos as expressões e sexualidades de acordo com nossas crenças.
Para os nativos norte-americanos, havia um grupo de regras específicas que tanto homens quanto mulheres deveriam obedecer para que fossem considerados "normais" dentro de uma tribo. As pessoas que reuniam em si características femininas e masculinas eram vistas com reverência, pois se acreditava que tinham grande poder.
Segundo o site Indian Country Today, especializado em notícias sobre povos indígenas, entre os norte-americanos eram reconhecidos 5 gêneros diferentes: masculino, feminino, dois-espíritos masculino, dois-espíritos feminino e o que hoje chamaríamos de transgênero. As nomenclaturas são diferentes para cada tribo, de acordo com os dialetos, mas referem-se a identidades de gênero semelhantes.
A crença dos indígenas norte-americanos era a de que algumas pessoas nasciam com um espírito feminino e outro masculino que se expressavam perfeitamente em um mesmo corpo. Em geral, não havia questões morais nem hierárquicas associadas às expressões de gênero ou à sexualidade; uma pessoa era julgada pela sociedade conforme seu caráter e de acordo com o que contribuía para a tribo.
A maioria dos grupos indígenas tem palavras específicas para se referir aos membros de sua sociedade cujas expressões de gênero são variantes em relação ao binário normativo. 
Entre os índios Yuman, por exemplo, chama-se elxa o indivíduo que, nascido como do "sexo masculino", teria sofrido uma mudança em seu espírito, resultante de sonhos que tinham durante a puberdade. Chama-se kwe'rhame a pessoa que, nascida como do "sexo feminino", desde pequena brinca com artefatos masculinos e que, ao crescerem, apresentam características sexuais secundárias femininas subdesenvolvidas.
Os índios Cocopa chamam e L ha aos indivíduos do "sexo masculino" que desde bebê demonstram um "caráter feminino". Os war'hemeh, por sua vez, nascem como do "sexo feminino", mas brincam com meninos e aprendem a confeccionar arcos e flechas.
Entre os Mohave, garotos destinados a se tornarem xamãs costumavam colocar os pênis entre as pernas e se exibir como garotas, passando ainda por um ritual de iniciação aos 10 ou 11 anos de idade, em que o futuro xamã é publicamente vestido com uma saia e tem seu rosto pintado. Além dessa manifestação, reconheciam-se também as alyha (que insistiam inclusive que o pênis fosse chamado de clitóris) e os hwane.
Os Navaho usavam o termo nadlE para se referir a "travestis" e hermafroditas.  
Desde 1989, nativo-americanos que militavam pela diversidade sexual e de gêneros resgataram o termo "dois-espíritos" (em inglês, two-spirit) para reafirmar sua identidade trans. Assim, "dois-espíritos" passou a ser uma expressão universal para identificar nativos e seus descendentes, que se considerassem transgênero, entre as tribos norte-americanas. 
Quando chegaram ao território norte-americano, exploradores que testemunharam a presença desses indivíduos que não se encaixavam no padrão binário do masculino e feminino consideraram aquilo um pecado, uma espécie de maldição que recaiu sobre aquelas comunidades por não se dedicarem ao cristianismo.
Estudos apontam que a existência de pessoas que hoje reconhecemos como transgêneros teria sido observada em quase todo o continente norte-americano. Vistos como homens efeminados que se travestiam, esses indivíduos foram chamados de "berdache" pelos colonizadores, termo que acabou sendo usado de forma genérica até mesmo por antropólogos e pesquisadores até o fim do século XX. Contudo, sua origem revela que se trata de uma denominação pejorativa: o termo é derivado do francês, "bardache", usado para se referir a homossexuais passivos e homens que se prostituíam.
A extinção das crenças nativas também aconteceu por todo o continente americano. Colonizadores espanhóis também se empenharam em destruir códices (manuscritos gravados em madeira) aztecas que mencionavam dois-espíritos e seus poderes mágicos. No Brasil, portugueses igualmente se esforçaram para erradicar as identidades de gêneros e comportamentos sexuais que hoje seriam considerados como transgeneridade e homossexualidade.
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Fontes:

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Ciclos de absurdos (ou "Dos machismos disfarçados de opinião")


Vocês se lembram de quando o Femen emergiu e uma série de protestos com mulheres sem camisa teve sequência? Pois bem, não levando em conta a história do Femen, mas de como os seios femininos são vistos como uma continuidade dos órgãos sexuais, defendo que a sexualização dos seios é muito mais cultural que biológica.

Enfim, eis que, em comentário às manifestações, um sujeito acha válido ironizar que os seios à mostra das ativistas estão caídos. Ora, o que um indivíduo desse tem como base para caracterizar seios caídos? No mínimo, seios com silicone, artificialmente firmes – e, daí, realmente, minha resposta foi pessoal: eu disse que ele nunca deve ter visto seios reais para dizer que os das manifestantes estavam caídos, afinal, a maior parte delas são de garotas jovens com os seios ainda “no lugar”.

Veja bem, ironizar seios caídos atinge diretamente a toda e qualquer mulher que os tenha. Eu mesma sofri uma adolescência inteira por enxergar meus seios como se fossem anormais, caídos, impossíveis de provocar desejo em qualquer outra pessoa. Foi isso que me levou à cirurgia plástica.

Porque internalizamos os padrões, é difícil ter consciência de que os seios mostrados em propagandas, novelas e filmes estão longe de representar uma realidade sujeita, por exemplo, a ações da gravidade e das mudanças corporais que vêm com o tempo.

Quando digo que a sexualização dos seios é mais cultural, refiro-me a como, em muitas outras culturas, os seios expostos não são encarados como um convite ao sexo. Uma mãe que amamenta precisa, para tal ato, expor seu seio – e não há nada de sexual nisso, bem como não há absolutamente nada de sexual no bebê que suga o mamilo da mãe para se alimentar.

Que a atração sexual passe pelo corpo inteiro e que ele tenha, então, potencial de provocar desejo de qualquer forma, tem, sim, algo de biológico. Contudo, o direcionamento do desejo é altamente cultural na medida em que se fala que “homem gosta de peito” ou “homem gosta de bunda” – pois esse tipo de afirmação legitima uma sexualidade masculina incapaz de se controlar diante do instinto, mesmo instinto que, quando a mulher se deixa levar por ele, é prontamente condenada.

Quando o homem usa de exceções para dar exemplos de como, para ele, o feminismo é repleto de exageros, ele ofende às mulheres que vivem dentro de uma “regra”, a qual as sujeita a inúmeras dificuldades. Aqui entramos com a cultura do estupro.


É mais comum que uma mulher estuprada seja desdenhada quandofaz a denúncia do que adequadamente atendida, principalmente no caso de mulheres sócio-economicamente desfavorecidas. Se algumas mulheres acusam falsamente um homem de estupro, é óbvio que o fazem de má fé, mas não é essa a regra. 

Entre mulheres que denunciam abuso sexual, a maioria está dizendo a verdade – até porque, para uma mulher, denunciar o estupro é, por si só, vergonhoso, e ela só o fará se tiver convicção – e, portanto, o questionamento, por parte do delegado ou do investigador de que o estupro realmente teria ocorrido leva inclusive a atrasos na investigação – quando não há uma investigação já tendenciosa por conta do pré-julgamento do próprio oficial.

Vale lembrar que, segundo pesquisas realizadas no Reino Unido, um homem tem mais chances de ser estuprado do que falsamente acusado de estupro.

Aos que se protegem com o “direito à opinião”, é preciso que estejam atentos para até que ponto sua opinião não cruza a linha da invalidação de uma luta ou até mesmo de uma situação sobre a qual você, mesmo como detentor da opinião, não tem conhecimento algum. Afinal, opiniões não são validações científicas se você não é um especialista na área sobre a qual está opinando.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

UFLA e a discriminação

[Nota prévia: Vini, obrigada por ser quem é!]

No dia 5 de maio, quinta-feira, Pablo Gabriel Galiza Barbosa, estudante do curso de Química da UFLA (Universidade Federal de Lavras) vestiu-se com uma camiseta customizada e uma saia preta longa para ir à faculdade. Lá, foi interpelado pelo segurança, que afirmou que a maneira como Pablo estava vestido era um trote e que, devido às políticas da instituição ele não poderia assistir às aulas usando aquelas roupas.

Mesmo depois de Pablo ter afirmado, com todas as letras, que aquela era a forma como se vestia normalmente, e que não havia relação alguma com brincadeiras aplicadas por universitários, o segurança se recusou a permitir que ele permanecesse na faculdade, chegando ao ponto de acionar a Polícia Militar lotada no campus para que abordasse o aluno.

Ainda que Pablo insistisse no fato de que havia escolhido sua roupa e que aquela era uma opção de seu cotidiano, a PM lhe fez ler o regimento interno, em que constavam as políticas da universidade a respeito do trote.

Claramente, nem o segurança nem a PM estavam dispostos a ouvir o que o universitário tinha a dizer. Pablo foi encaminhado para conversar com o pró-reitor, que não estava presente e, porque no momento, compreensivelmente, encontrava-se nervoso, foi levado à sala da psicóloga da universidade. No entanto, o segurança que interpelara o aluno adentrou com ele na sala para dar sua versão dos fatos. Pela terceira vez, Pablo foi silenciado.

Os atos do segurança revelam como a questão da discriminação não é levada a sério quando ocorre pontualmente e de maneira velada. O critério utilizado para vetar a entrada do aluno é baseado em princípios preconceituosos, como é possível notar ainda na fala do reitor, José Roberto Scolforo, em entrevista para a EPTV. Segundo afirmou, "A pessoa veio fora de um padrão considerado por ele razoável observando as normas e, portanto, ele de uma forma extremamente cortês considerou que aquilo ali não era uma vestimenta adequada".

Podemos inferir que um padrão considerado razoável pelo segurança passa pela lógica que divide roupas entre “femininas” e “masculinas”, mas não é esse o maior problema na atitude do funcionário. A tentativa de imposição de sua percepção, segundo alunos da faculdade que conhecem Pablo e acompanharam o desenrolar da situação, foi de intimidação e silenciamento do garoto.

Se o trabalho do segurança é o de cumprir ordens da instituição e obedecer às regras, isso não pode ser feito com violação da dignidade de qualquer aluno. Ademais, ao acionar a Polícia Militar, o segurança excedeu sua função, pois somente a reitoria é autorizada a isso.

A indignação de Pablo e das demais pessoas que protestaram nas dependências da universidade é, antes, causada pelo cerceamento da expressão de identidades dentro de um local em que a liberdade deveria prevalecer.


Um grupo de 5 estudantes conversou com o reitor após o ocorrido, estabelecendo alguns acordos, conforme relatado pelo Vinícius Lucas de Carvalho, estudante do mestrado da UFLA e militante pelos direitos LGBTTTQIA+. Reproduzo, aqui, suas próprias palavras, após segunda matéria (tendenciosa) veiculada na EPTV, filial da Rede Globo de Lavras:

sexta-feira, 6 de maio de 2016

MEC publica nota de repúdio às tentativas de "cercear os princípios e fins da educação"


Em nota pública, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) se posiciona em relação ao que considera uma busca por "cercear os princípios e fins da educação nacional", criticando, especificamente, os "documentos autodenominados “notificações extrajudiciais contra o ensino de ‘ideologia de gênero’ nas escolas”; a recomendação do Ministério Público de Goiás (MPF/GO) a 39 órgãos e autarquias federais (incluindo universidades e institutos federais instalados no estado de Goiás), para que não sejam realizados atos políticos dentro das suas dependências físicas; e o Projeto de Lei aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas que institui, no âmbito do sistema estadual de ensino, o “Programa Escola Livre”, o qual, verdadeiramente, tenta anular princípios educacionais consagrados pela Constituição Federal de 1988 e reafirmados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996)".

A movimentação contra a chamada "ideologia de gênero" levou à publicação de um modelo de notificação extrajudicial em que a família do aluno poderia notificar a escola de seu posicionamento contra o ensino de questões relativas a gênero e diversidade sexual - basicamente, uma prévia ameaça de processo à escola. O posicionamento contra uma suposta "ideologia de gênero" significa uma resistência a se tolerar a diversidade como um todo, ensinamento que deveria ser obrigatório nas escolas e que foi determinado com o Plano Nacional de Educação.
A recomendação do Ministério Público de Goiás para que não sejam promovidos atos político-partidários a respeito do impeachment visa à inibição de debates políticos, afetando diretamente a universidade, local em que ocorreriam com maior frequência. A liberdade de se debater questões políticas na universidade é essencial, sendo seu cerceamento uma grande contradição, além de se tratar de uma tentativa de desvirtuar o papel da educação como um todo.
Em Belo Horizonte, uma decisão judicial proibiu alunos da UFMG de se reunir para debater a questão do impeachment, no dia 29 de abril, impedindo a sessão que ocorreria no CAAPS (Centro Acadêmico Afonso Pena), prédio do curso de Direito da universidade. A decisão concedendo a liminar foi tomada pela juíza Moema Miranda Gonçalves após ação movida por dois dos alunos, sob justificativa de "aparelhamento partidário".
Ainda em Minas, o projeto de lei do vereador Marcos Vinícius, do PROS, em Divinópolis, visava à proibição da distribuição exposição e divulgação de material didático contendo manifestações da "ideologia de gênero" nas escolas municipais. 
O Projeto de Lei aprovado em Alagoas é mais um exemplo de como políticos confundem a necessidade de formação de pensamento crítico com um doutrinamento ideológico, ignorando, aliás, que não existe discurso completamente isento de ideologias, por mais neutro que ele possa parecer.
Quando se colocam contra o ensino e o incentivo para que alunos debatam a respeito das diversidades sociais (não somente no âmbito sexual), reafirmam a continuidade do preconceito e da discriminação e, ainda pior, autorizam judicialmente que pais promovam a criação dos filhos baseados em ideias intolerantes e altamente equivocadas - as quais configuram, por si só, intensa violência simbólica contra as crianças consideradas "diferentes", que não se encaixam em modelos impostos de normalidade.
Conforme explica o próprio MEC, "Um professor, ao abordar o preconceito e trabalhar o desenvolvimento de uma cultura de paz, respeito e tolerância em sala de aula, cumpre os objetivos fundamentais da Constituição Federal, que pretende garantir um Brasil sem discriminação. Não há dúvidas de que os professores brasileiros possuem a formação necessária para essa tarefa".
A existência de projetos e manifestações como as exemplificadas aqui indicam como o avanço do conservadorismo não é algo pontual. Trata-se de uma movimentação que conta com grande número de apoiadores e pode verdadeiramente inibir o avanço social de demandas das minorias.
As justificativas para se posicionar contra a instituição de programas sociais nas escolas são padronizadas e pautadas no escudo da "opinião". Para os pais que não aceitam o ensino, por exemplo, de educação sexual, predomina a opinião de que, para eles, não é bom que seus filhos aprendam sobre sexualidade. 
A formação de seu ponto de vista está baseada em ideias como a de que, do ponto de vista da sexualidade, professores vão estimular seus filhos a "se tornarem" homossexuais ou, em relação ao gênero, que será pregado que cada indivíduo pode escolher seu gênero conforme bem entender, pois ninguém nasce homem ou mulher. Deixam, assim, de perceber questões simples como o fato de que uma garota nascer com vagina, por exemplo, não determina se ela vai gostar de rosa ou ser delicada - e, principalmente, que determinarem o gosto pessoal e o comportamento de seus filhos com base em seu sexo biológico pode ser prejudicial a longo prazo.
 O grande problema é que, ao se apegarem a concepções inexistentes, acreditando que se trata de uma interpretação correta sobre o tema, acabam por ignorar por completo a condição transgênero como realmente é.
Construir uma argumentação com base em percepções definitivamente erradas revela como não existe uma preocupação, seja por parte dos líderes e representantes conservadores, seja por parte dos pais, de sequer conhecer as percepções por trás dos estudos de gênero e sexualidade.
 Além do mais, defendem a não aplicação de certas temáticas em sala de aula a partir da afirmação de que professores e outros profissionais da educação não deveriam dizer aos pais como "educar seus filhos" (expressão que tenho visto com frequência). Confundem, deliberada ou equivocadamente, o âmbito privado com o público, sobrepondo a função dos pais à do educador, a quem entregam, bem, a educação de seus filhos.
Os defensores dessa política conservadora usam sua vida familiar como métrica para opinar no funcionamento de instituições educacionais, dentro das quais a criança tem seu primeiro contato com uma sociedade externa ao núcleo de sua própria casa e, consequentemente, com as diferenças de cada sujeito. Deixam, ainda, de levar em conta que delegam ao sistema educacional grande parte da experiência de vida de seus filhos enquanto crescem, por vezes sem acompanhamento algum desses pais que, em discurso, tanto se preocupam com o que o filho irá aprender - mas que, na prática, raramente seguem os passos da criança dentro do ambiente escolar.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Luana, negra, pobre e lésbica, morre após ser espancada por PMs


Luana Barbosa dos Reis Santos, de 34 anos, ao levar o filho de 14 anos à aula, em Ribeirão Preto, parou para cumprimentar um amigo que estava num bar. Parada na esquina da rua onde morava, no bairro Jardim Paiva II, localizado na periferia da cidade, foi abordada e espancada por policiais.
De repente, gritos e tiros tomaram conta do local na noite de 8 de abril, e uma vizinha se apressou a avisar os familiares: “Corre que eles vão matar a Luana”. 
As versões de como tudo começou variam. Segundo a própria Luana, em vídeo gravado logo após as agressões, os policiais a mandaram abaixar a cabeça e colocar as mãos para trás. Ao pedir que a revista fosse feita por uma policial mulher e não ter seus direitos respeitados, Luana se recusou a deixar que o procedimento continuasse e foi aí que as agressões começaram. O vídeo com o relato de Luana contém cenas fortes:

Depois de algemada, Luana recebeu um soco e um chute, além de apanhar repetidas vezes com cassetetes e até mesmo com seu próprio capacete. De acordo com testemunhas, policiais chutaram Luana para fazê-la abrir as pernas e ela caiu no chão.  Ao se levantar, deu um soco em um dos policiais e chutou o pé de outro, o que levou as agressões a se intensificarem.
Após o espancamento, os PMs entraram na casa dos familiares, alguns escoltando o filho de Luana e perguntando se ela usava ou traficava drogas, se roubava, no que trabalhava. Revistaram o quarto dela, bem como objetos de outros familiares.
Ela teria sido levada à delegacia apenas de top e cueca, com os olhos inchados, marcas pelo corpo, principalmente na região do abdômen. Segundo um familiar entrevistado pela Ponte Jornalismo, ela vomitava muito e precisou de ajuda para assinar os termos que ela mal conseguia ler, por conta do inchaço nos olhos e porque cambaleava.
Somente depois de prestar declaração, foi leva à Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas, onde permaneceu internada, mas faleceu 5 dias depois devido a uma isquemia cerebral aguda causada por traumatismo crânio-encefálico.
Os policiais relatam que a abordagem se deu porque Luana era suspeita de estar pilotando uma moto roubada. Conforme consta no documento oficial da delegacia, os PMs alegam terem sido desacatados e agredidos pela mulher, que estava "descontrolada".
Emdeclaração ao G1, o tenente coronel da PM, Francisco Mango Neto, nega quetenha havido excessos na abordagem e completa: "Na realidade foi para contê-la. Tanto que os policiais estavam muito mais lesionados, com cortes, e ela não. Ela foi íntegra para a delegacia, lá foi solicitado exame de corpo de delito, o qual ela deveria passar". Sobre a morte, disse que ainda seria preciso uma apuração: "Vamos apurar se esse AVE ela teve por lesão ou se teve por um outro motivo, como drogas, anabolizantes, porque ela era uma lutadora de arte marcial, bem forte".
Os suspeitos da agressão de Luana, Douglas Luiz de Paula, Fábio Donizeti Pultz e André Donizeti Camilo, do 51º Batalhão da corporação, estão sendo investigados. Procurados pela Ponte Jornalismo, não quiseram dar declarações sobre o caso.
Trata-se de uma situação recorrente no Brasil: pobre e negra, Luana havia deixado a prisão em 2009, quando foi acusada de porte de arma e roubo. A irmã Roseli, professora, conta que desde então ela havia dado continuidade aos estudos e estava trabalhando como faxineira, garçonete e vendedora. Seu passado e sua identidade fizeram com que Luana estivesse vulnerável à violência policial.
Indignada, a irmã desabafou à Ponte Jornalismo: “Ela não pode refazer a vida? Ela não tem mais direitos e nem é ser humano por ter passagem? Não tinha nenhuma acusação contra ela. Estão tentando usar o fato de ela já ter tido passagem para convencer a opinião publica de que foi merecido. Que bandido bom é bandido morto. Por que não levaram ela presa pelo desacato? Por que fizeram tudo isso com ela? Ela já estava rendida, não tinha necessidade disso".



quinta-feira, 14 de abril de 2016

A transfobia continua e a culpa é de todos


Na segunda-feira eu publiquei uma notícia sobre como a transfobia não parte só das pessoas que agridem fisicamente um indivíduo trans, mas também daquelas que fazem comentários preconceituosos mascarados como "opiniões".

Agora, a YouTuber Mandy Candy expôs mais exemplos - ainda piores - de como o ódio deliberado a pessoas transgênero é propagado pela rede. E se o teor dos comentários já nos incomoda por si só, imagine como é para alguém que lê (ou ouve) esse tipo de coisa diariamente...

Em um vídeo extremamente corajoso, ela revelou sobre sua cirurgia de redesignação e explicou, de forma bastante clara, sua necessidade de passar pelo procedimento e como se sentia antes dele.
Não faltaram comentários afirmando que ela havia se mutilado, que é um absurdo o SUS oferecer essa cirurgia, que ela precisa de tratamento psicológico porque é doente...

A questão é que as pessoas não precisam ser favoráveis à transgeneridade ou até aceitar conviver com alguém trans intimamente. Mas compreender o sofrimento desses indivíduos e procurar exercer alguma tolerância por saber que se trata de uma condição sobre a qual eles/as não têm controle é o mínimo que se espera de um indivíduo com qualquer resquício de bom senso.

É certo que as ciências e a medicina ainda não descobriram todos os fatores envolvidos na transgeneridade (na verdade, não descobriram nem mesmo os fatores envolvidos na identidade de maneira geral), mas há um número considerável de pesquisas que oferecem uma prova da existência dessa condição a nível biológico. Sendo assim, não se trata de "acreditar" ou não que uma pessoa se identifique como alguém do outro gênero, pois a existência dessa pessoa já foi comprovada e legitimada cientificamente - e numa sociedade em que as ciências são vistas como discursos inquestionáveis, isso é muito importante.

Para que alguém chegue a passar pela cirurgia de redesignação genital, é certo que já tentaram tratamentos psicológicos, psiquiátricos (pelo menos aquelas pessoas que têm condição para tanto) e passaram muito tempo se perguntando se a decisão pelo procedimento era o certo a se fazer. Por ser uma cirurgia grande, complexa, a recuperação é longa e requer muito cuidado, um dos muitos motivos que levam pessoas trans a não desejar passar pela redesignação.

Vale lembrar também que não existem apenas dois tipos de genitais - esses dois tipos, o pênis e a vagina, são o que a ciência usa como modelo. Há casos múltiplos de genitais intersexo e o motivo de afirmarmos que as classificações "homem" e "mulher" não pode ser restrita à aparência do órgão sexual externo tem relação com essa impossibilidade de se apontar, em certos casos, se a pessoa é de fato "homem" ou "mulher". Isso sem falar em toda a simbologia social atrelada aos "sexos" sem qualquer base na biologia.

Sobre a dor e o sofrimento pelo qual passam essas pessoas que não podem se enxergar em seu próprio corpo, certamente a Mandy pode falar melhor que eu:

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Cura gay?


Nos meios religiosos é comum as propagandas falando de palestras oferecidas por pessoas que se intitulam "ex-gay" e "ex-travesti", indivíduos que aparentemente foram "curados" de seus "males". (O caso da Sarah Winter como ex-feminista não se encaixa aqui, ok? Falta de discernimento, algo que ela já demonstrava quando se dizia feminista, é outro tópico...)

Sabemos que na estratégia em que predomina a desonestidade intelectual vale tudo, por isso peço que se atentem às minhas palavras tendo em mente que eu não estou defendendo uma suposta "cura gay". Meu objetivo aqui é o de demonstrar que mudança de comportamento e mudança de orientação do desejo sexual são coisas diferentes e que o primeiro é possível - sem que ocorra o segundo.

No caso da "ex-travesti", essa pessoa provavelmente opta por suprimir sua identidade de gênero - o que, novamente, não significa que ela não se identifique como alguém do "gênero feminino", mas que escolheu não viver de acordo com esse aspecto de sua identidade.

Tomamos nossas decisões com base no que julgamos ser mais importante em nossa vida e isso faz com que cada um assuma suas próprias prioridades. E para muitos, encaixar-se nos padrões de "normalidade" pode ser uma necessidade subjetiva muito maior que poder exercer livremente sua sexualidade. Sendo assim, é possível que um indivíduo se torne "ex-gay" se ele preferir seguir os preceitos da igreja, por exemplo, em detrimento de sua orientação sexual.

O fato de uma pessoa ser "ex-homossexual" não significa que ela não sinta mais o desejo homossexual, mas que ela optou por negar essa parte de sua identidade.

E por falar em identidade, vale lembrar que assumir uma posição identitária é uma atitude política e social - a qual não vai, necessariamente, ditar todos os seus atos. O que quero dizer com isso? Bom, um homem homossexual pode muito bem fazer sexo com uma mulher e se sentir excitado durante a relação. Ele não deixa de ser homossexual por isso, uma vez que politicamente se identifica como tal e vê, no desejo homoafetivo e na necessidade de vivê-lo livremente, uma prioridade para si.

É muito difícil entrar no mérito da "felicidade" quando não damos conta de defini-la conceitualmente - e, particularmente, eu acredito que uma pessoa que decida por se tornar "ex-gay" considera esse caminho o que lhe trará menos sofrimento. Contudo, quando essa mudança lhe é forçada pelos pais ou pela igreja, certamente ela trará ainda mais danos à pessoa, por não lhe respeitar a liberdade de escolha.

Por mais que eu deteste admitir, quando o pastor Silas Malafaia diz que "ninguém nasce homossexual", ele está certo. Mas sua fala ignora (acredito que voluntariamente) que ninguém nasce heterossexual também. Se o pastor realmente se formou em psicologia, ele aprendeu que tanto o desejo homossexual quanto o heterossexual se formam no indivíduo por volta dos 4 ou 5 anos de idade, quando passamos pela fase edipiana. A sexualidade é algo que vai amadurecendo no sujeito e o desenvolvimento sexual ocorre gradativamente, tal e qual os desenvolvimentos físico e emocional.

É, inclusive, curioso como os conservadores lutam tanto para que os filhos não tenham contato com temas que envolvam a sexualidade ao mesmo tempo em que dizem que o sexo entre homem e mulher é algo natural. Afinal, se é algo natural, não seria adequado que falássemos dele para as crianças, então? Se até uma determinada idade não se julga que a criança deva saber sobre sexo e sexualidade, é porque se julga que não existe, até então, formação sexual - logo, não existe objeto de desejo, nem orientação, indicando que essa criança não poderia ser chamada nem de heterossexual nem de homossexual.

Ainda não sabemos ao certo o que causa a homossexualidade, mas já existem estudos demonstrando interessantes especificações biológicas que indicam que não se trata meramente de um comportamento que pode ser aprendido e deixado de lado quando se bem entende.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Nos trending topics, a ignorância escancarada


E eis que esta é a hashtag mais usada no Twitter de brasileiros:

Isso aconteceu em resposta a uma campanha lançada com a hashtag #SouFeministaPq, visando à discussão sobre problemas ainda hoje enfrentados pelas mulheres apenas por serem mulheres. Entre as motivações da luta feminista está o assédio constante sofrido por mulheres na rua - e do qual são culpadas porque "provocam" -, além do fato de que, no Brasil, ocorre 1 estupro a cada 11 minutos.

As mulheres precisaram lutar para ter o direito de votar, delegado ao homem desde sempre (exceto aos pobres), precisaram se manifestar para ter direito à educação e até mesmo para ter o direito de dizer "não" ao marido. Na sociedade vitoriana, por exemplo, a mulher não tinha direito às posses que dividia com o marido nem à guarda dos filhos; no caso de separação, tudo ia para o marido, independentemente de o bem ter sido herdado pela mulher.

As mulheres ainda não têm o direito de escolher se desejam ou não ter filhos - não interessa se quem passa por todo o processo físico da gravidez é ela - e porque engravidam recebem menos em seus empregos quando conseguem ser contratadas. Até hoje a mulher que não quer ser mãe é condenada.

Eu poderia falar mais sobre o feminismo, inclusive sobre a história da luta por igualdade de direitos, a qual acabou também por criar correntes diferentes de pensamento, levando à existência de feminismoS múltiplos. Deve-se lembrar, ainda, que feminismo não é o mesmo que ódio aos homens (ódio que pode até fazer parte de uma ou outra linha de pensamento, mas que não é uma regra) e que o desprezo pelo machismo vem de vidas inteiras sendo submetidas a essa dominação que coloca o homem como superior à mulher.

Quando, em resposta a uma campanha pelo feminismo, pessoas adotam uma hashtag do tipo #RolaNoRaboDasFeministas, fica evidente que a "rola" ou seja, o falo, ainda é um instrumento dominador. É como se a "rola" fosse capaz de fazer com que a mulher deixasse de ser feminista por meio da humilhação. Aliás, aqui se mostra outro pensamento machista: o de que uma pessoa sexualmente passiva é alguém menor que, por gostar de ser penetrada pela "rola" é uma espécie de masoquista.

Não é a feminista que sente repulsa pela "rola", mas o "macho" que é ensinado, desde pequeno, a orgulhar-se de sua "rola" e de demonstrar aversão pela "rola" alheia. Aliás, viris como são, esses "machos" não podem se sensibilizar com luta alguma, pois devem sentir orgulho também da própria ignorância e falta de empatia.


Desserviço: "imprensa" que distorce e não se informa


Após ter feito a cirurgia de redesignação genital em 2012 na Tailândia, Lea T. tem falado, em algumas entrevistas, sobre seu arrependimento.

Tendo passado por uma experiência ruim durante a recuperação, Lea T. repensou sua condição de mulher, afirmando que "ninguém vai virar mulher com a vaginoplastia". Essa fala é importante e deve ser destrinchada - e não distorcida como a imprensa vem fazendo.

Após a vaginoplastia, a modelo teve gangrena, certamente um trauma que a deve ter feito refletir muito. O que ela diz é que muitas trans procuram se tornar "mulheres completas" de acordo com os padrões impostos pela sociedade, que não aceita uma mulher trans que esteja satisfeita com seu corpo antes da redesignação genital.

Ao que parece, seu arrependimento foi o de ter procurado satisfazer esses padrões e, como ela disse de forma muito clara em entrevista à Oprah Winfrey: "Para mim foi um periodo intenso, de muita pressão sobre mim e minha vida. Fazer uma operação de mudança de sexo mudará uma parte de seu corpo. Uma parte realmente íntima do seu corpo, mas isso é tudo. Você não muda o seu cérebro, não muda os seus olhos, não se torna uma princesa após a operação.... Você continua a ser a mesma pessoa. Quando acordei (da cirurgia), ainda era eu mesmo, gostava das mesmas coisas".

É interessante notar como a fala de Lea expõe a pressão que todas enfrentam pela sociedade e como isso influencia em grande parte as decisões de uma pessoa. Normalmente, ninguém procura se informar a fundo a respeito da transgeneridade antes de dar sua opinião - quase sempre equivocada e infundada - e vê no discurso agora proferido por ela uma justificativa para se posicionar contra a aceitação dos indivíduos trans.

Um exemplo é a matéria preconceituosa e rasa publicada no blog do Leo Dias, no jornal O Dia:

O texto do blog sugere que Lea T. está arrependida de ter "virado transexual" (entre aspas, afinal, ninguém "vira" trans, a pessoa É trans), como se quisesse "voltar" a ser do gênero masculino. Aqui, o discurso claramente confunde a experiência traumática de Lea e seu arrependimento de ter decidido pela redesignação com um arrependimento por ser quem é - este último, uma afirmação absurda.

Como se não fosse o suficiente, a matéria mistura gênero e sexualidade, como se uma mulher trans fosse, por associação, heterossexual. Isso reforça o que chamamos de "heteronormatividade", que apenas enxerga o comportamento hétero como norma e ignora outras orientações.

Uma mulher trans pode muito bem ser lésbica ou bissexual. E, reforçamos, Lea T. não se arrepende de ser uma mulher trans. Seu arrependimento está na decisão de passar por uma cirurgia bastante invasiva e delicada que fez com que ela ficasse muito tempo em recuperação - e que não alterou sua mente.

Seu caso não é exclusivo. Muitas mulheres que se submetem à vaginoplastia o fazem para se encaixar na sociedade e acabam se arrependendo depois porque o resultado é unicamente físico. Uma cirurgia não torna uma mulher realizada - e isso serve para todas. Há pessoas trans que não sentem a menor necessidade de passar por intervenções cirúrgicas e isso deve ser respeitado, pois sua realização não depende das modificações físicas.

As pessoas parecem incapazes de entender que existe uma gama muito ampla de expressões de feminilidade e masculinidade, e que nem sempre adequar-se ao que esperam de você é sinônimo de felicidade. Uma mulher trans é uma mulher, pois é essa sua identidade. O que ela fará em seu corpo para expressar essa identidade é uma escolha que só cabe a ela.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Professores que cometem abuso são uma realidade

Desde muito novos somos apresentados à ideia de que o professor é o responsável por nos transmitir conhecimento e de que passaremos grande parte da nossa vida sob suas tutelas. A convivência deve ser respeitosa e amigável e, não raro, são as professoras e professores os primeiros adultos, à parte dos familiares, a quem admiramos intensamente.

Na verdade, construímos com eles o mesmo tipo de relação que temos com as demais pessoas que amamos e com quem convivemos por muito tempo – às vezes conturbada, às vezes tranquila, às vezes com uma proximidade e carinho evidentes, próprios dos grandes amigos.

Quando passamos a ter professores diferentes para matérias específicas, a sensação de tutela se dissipa e não existe a mesma cumplicidade, a não ser com aqueles com quem temos mais afinidades, seja pela matéria que lecionam, seja pela personalidade que nos cativa. Ainda assim, não deixamos de confiar nesses profissionais e até mesmo de recorrer a eles quando precisamos de ajuda – inclusive no âmbito pessoal.

Concordo que para algumas pessoas essa descrição que acabo de fazer vai soar romantizada. Mas a questão da confiança, em maior ou menor grau, é importante para o relacionamento que compreende o aluno, o professor e a instituição em que ambos se encontram, ou seja, a escola. Quando essa confiança é quebrada, desmantela-se também a sensação de segurança que nos deve ser garantida pela escola.

Assim, é assustador pensar que, dentro da instituição à qual confiamos o bem-estar da criança, encontra-se um indivíduo capaz de tirar proveito da situação para abusar de seus próprios alunos.

Recentemente, foi publicada a notícia de um professor acusado de abusar sexualmente de garotas de 9 e 10 anos de idade, alunas do 5º ano do fundamental, em escola municipal da cidade de Cajati, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo.

O docente teria agido levando as meninas durante os intervalos a uma sala de aula vazia, onde pedia beijos na boca e tocava os genitais das vítimas. Acredita-se que ele tenha feito isso com pelo menos três alunas, mas os detalhes do caso ainda não podem ser revelados por este estar em processo.

No Facebook, a página “Meu Professor Abusador” publica, anonimamente, relatos de pessoas que foram vítimas de seus próprios professores, tanto na escola como em cursinhos e universidades. No ar desde 9 de fevereiro deste ano, a página tem quase 600 relatos publicados e já tem sido alvo de ameaças judiciais.

Ali, os casos são apresentados anonimamente, sem que a vítima seja exposta – e também sem que o suspeito tenha seu nome revelado, apesar de às vezes ser possível, para as pessoas próximas à vítima e ao acusado, reconhecer de quem se trata.

A existência dessa página é importante para mostrar como a figura do professor abusador é real e pode se tratar de alguém que age da mesma forma há muito tempo sem ser denunciado. Ao coletar os relatos e publicá-los, dá-se às vítimas oportunidade de perceberem que não estão sozinhas e podem ser fonte de motivação para que denunciem seus agressores.

A maior parte dos casos acontece com garotas assediadas por professores, no entanto, cabe ressaltar que professoras também podem cometer abuso sexual e que garotos também podem ser vítimas. Infelizmente, no caso de meninos abordados por professores ou professoras, é ainda mais difícil haver denúncia formal, por vergonha das vítimas ou por acreditarem que um homem “não pode sofrer abuso”.

Por fim, em tempos de redes sociais, cabe algumas dicas sobre como agir no caso de assédio (não apenas de professor, mas de qualquer um que venha a abordar):

  •  Não publique imediatamente um texto com foto no Facebook denunciando a pessoa. Se isso for feito antes que seja registrado um boletim de ocorrência ou mesmo enquanto o caso estiver em julgamento, você pode sofrer acusação por parte do suspeito, por danos morais, calúnia ou difamação.
  • Se você for menor de idade, converse com seus pais antes de procurar a direção da escola ou cursinho, para que vocês possam decidir juntos o que fazer.
  • Converse com um advogado para que ele possa lhe orientar a respeito de como proceder.
  • Se a pessoa que abusou de você fizer comentários nos seus perfis em redes sociais, ou enviar mensagens pessoais a você, dê “print” em tudo e salve no seu computador – de preferência, faça ainda um back up e guarde em local seguro – e não apague as postagens. Esses registros podem servir de prova em um processo.

Ainda sobre essa questão de ocorridos pela internet, o vídeo da advogada Gisele Truzzi é bem esclarecedor:


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Precisamos falar sobre pedofilia


Devido ao episódio ocorrido no Big Brother Brasil sobre o qual falei no texto anterior, em que Ana Paula chama Laércio de pedófilo, uma discussão surgiu nas redes sociais: o que é pedofilia e o que leva um indivíduo a ser pedófilo?

Por se tratar de um desejo sexual tabu, pouco se fala e muito se equivoca na hora de tratar desse problema. Em partes, porque o senso comum tende a generalizar as coisas e em partes porque nossa atitude, diante do comportamento pedofílico, é um tanto quanto histérica e pouco racional.

Não estou, em hipótese alguma, defendendo a pedofilia. O que defendo é o esclarecimento sobre ela para que possamos justamente refletir sobre as melhores soluções possíveis no que concerne ao tratamento e mesmo à punição de pedófilos. A generalização acrescida à demonização do pedófilo faz com que as coisas piorem: porque evitamos compreender tal comportamento, somente nos voltamos para sua realidade quando o abuso infantil acontece e o sujeito é condenado, quando já é tarde demais.

O termo "pedofilia" foi cunhado pelo sexólogo Richard von Krafft-Ebing em 1886. Ele designa aquelas pessoas que sentem atração primária por crianças impúberes ou no início da puberdade (por volta dos 13 anos de idade). A "filia", no grego, pode significar tanto amor como amizade.

Os motivos de uma pessoa ser pedófila não foram ainda completamente descobertos, mas pesquisas realizadas ao longo de mais de uma década pelo Dr. James Cantor, do CAMH (Centre for Addiction and Mental Health), indicam que se trata de algo tão arraigado quanto a orientação sexual, de cunho biológico e, portanto, identificável no cérebro.

Muitas pessoas, obviamente, jamais vão revelar que são pedófilas, nem mesmo a um terapeuta ou psiquiatra. Sendo assim, não existe um estudo preciso sobre quantos pedófilos existem no mundo e as estatísticas variam de 1% a 20% da população mundial. A falta de pesquisas é justificada, por algumas instituições, pelo fator econômico atrelado ao tabu: se uma organização conduzir um estudo sobre pedófilos pode passar a impressão de que, ao querer entendê-los, é empática a eles, o que certamente levaria empresas a deixarem de contribuir com doações.

Nos poucos estudos realizados com voluntários, descobriu-se que cerca de 17% dos homens que se consideram "normais" (ou seja, que não se descrevem como pedófilos) seriam capazes de se excitar sexualmente por alguma criança abaixo dos 12 anos de idade.

Uma pesquisa feita em 2006, por Becker-Blease e colegas, usando um questionário preenchido por 531 homens universitários, revelou que 7% dos participantes admitiram sentir atração sexual por "crianças pequenas", enquanto 18% disseram ter fantasias sexuais com crianças - dos quais 8% se masturbavam com essas fantasias e 4% admitiam que fariam sexo com uma criança "se ninguém descobrisse".

Há ainda menos estudos tratando da pedofilia entre mulheres. Em 1996, uma pesquisa feita por Smiljanich e Briere sugere que 3% de um grupo de 180 mulheres admitem atração por "crianças pequenas" e 4% usam pornografia infantil.

Lembrando que todos os estudos foram feitos com voluntários e que nem todos os pedófilos revelam seu desejo, essas estatísticas provavelmente mostram um número muito menor do que a realidade. A conclusão? A pedofilia não é rara, mas recorrente entre as pessoas. O que acontece é que a sociedade não tem a menor ideia do que fazer com pedófilos que não cometem crimes.

Ninguém se importa em procurar entender e ajudar aqueles pedófilos que não agem em função desse desejo sexual e que precisam, com urgência, de tratamento para que aprendam a controlar seus impulsos e não cometam abuso contra crianças. Contudo, porque enxergamos a atração sexual por crianças como um crime por si só, partimos diretamente para a culpabilização e desejo de punição, pulando o referido tratamento que pode ser crucial para se reduzir o número de abusos.

Devemos nos lembrar, ainda, que o fator cultural faz com que nem todo abusador de crianças seja, necessariamente, pedófilo - da mesma forma que nem todo pedófilo é um abusador.

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Fontes e leituras recomendadas:

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sobre Laércios e novinhas

No Big Brother Brasil, a repercussão do atrito entre os participantes Ana Paula e Laércio trouxe à tona um tema que precisa ser discutido com seriedade: o sexo entre pessoas mais velhas e adolescentes.

Primeiramente, gostaria de alertar para o fato de que não estou tratando, aqui, de pedofilia, tema do qual tratarei em outro texto. Resumidamente, o indivíduo pedófilo é aquele que sente atração sexual por crianças pré-púberes. No entanto, ter a criança como objeto de desejo não significa, necessariamente, agir para satisfazer esse desejo e cometer abuso. Muitos pedófilos não são criminosos e passam sua vida reprimindo e controlando essa atração repulsiva – na verdade, uma minoria dos pedófilos (no sentido de pessoas que realmente apresentam um transtorno) comete crimes.

Sendo assim, o tal Laércio não é um pedófilo. Ele pode apresentar problemas sérios de conduta, mas não é um pedófilo. Ele é, inclusive, suspeito de ter cometido um crime ao abusar sexualmente de uma menor de idade e os rumores sobre sua conduta são anteriores ao episódio do conflito com Ana Paula.
Além do mais, em sua página no Facebook, ele admite gostar de adolescentes e de fazer sexo com garotas bêbadas:




Quando assume que gosta de uma “novinha”, o indivíduo parece não ver algo de errado nessa preferência. E isso acontece porque no Brasil existe uma cultura de hipersexualização da “novinha” que vem se perpetuando inclusive por meio de letras de músicas populares, por exemplo, “Me Lambe”, dos Raimundos, “Novinha do Orkut”, de Claudinho e Buchecha, “Fica Caladinha”, do Bonde do Tigrão, entre muitas outras.

Justamente na música, a hipersexualização fica ainda mais evidente quando observamos letras cantadas por garotos como MC Pedrinho, que mal entrou na adolescência, mas ganha dinheiro com títulos como “Na Putaria”, “Geometria da Putaria”, “Planeta da Putaria”...

Em pesquisa, realizada pela página pornô PornHub, revelou-se que “novinha” é o termo mais buscado no Brasil. Esse resultado é uma indicação do imaginário brasileiro – e de muitos outros países, em que a palavra mais procurada era “teen”, ou seja, “adolescente”.


A atração pela ninfeta pode ser explicada pelo fato de se tratar de garotas ainda imaturas que podem facilmente se deixar convencer por homens mais velhos. Vale lembrar que o conceito de “ninfeta” passa, necessariamente, pela ideia de adolescente ou menina que incita o desejo sexual.

É impossível refletir sobre essa questão sem levar em conta a oposição à educação sexual nas escolas por parte de muitos pais e adultos formadores de opinião. Ao mesmo tempo em que se procura ignorar a sexualidade infantil, luta-se para “proteger” as crianças de uma realidade com a qual elas se deparam muito cedo.

A garota que o pai deseja proteger por meio da proibição de aulas sobre sexo e sexualidade no âmbito educacional é a mesma que, na rua, é assediada constantemente e tratada como um objeto de desejo (no pior sentido da palavra) independentemente de sua idade.

Vale lembrar as palavras de Carol Patronício em seu texto escrito na ocasião do Master Chef Junior, quando homens fizeram comentários a respeito de uma criança de 12 anos que participou do programa:

Enquanto meninas são encaminhadas a uma maturidade precoce, os meninos e homens são perdoados por todos seus erros porque são apenas garotos, independente da sua idade — vamos deixar claro também que isso acontece com mais força quando relacionado a homens brancos e de certa posição socioeconômica, aos homens e meninos negros ou pobres sobra apenas a desconfiança e teorias que apontam seus erros como biológicos.

Some a toda essa cultura a ideia de que todas as mulheres são vagabundas. Todas aquelas que não estão dentro do padrão esperado por aquele homem, já que não existe um consenso sobre como deveria ser o comportamento feminino de uma não-vadia. Quando a mulher é bonita, então, o problema é ainda maior: ela é tida como burra, é objetificada, estereotipada e tem tomada de si a possibilidade de dizer não a qualquer investida. O preço disso é ser tachada de metida. E não importa o que uma mulher faça: basta despertar o desejo em um homem e você se torna vagabunda.

O desejo é responsabilidade de quem o sente e não de quem o desperta. Quando um adulto sente desejo por uma criança é ele o culpado por ir contra uma norma social que protege a infância, a integridade e o corpo de uma incapaz (de acordo com a lei). Porém é muito simples inverter esse raciocínio ao dizer que a menina já tem em si a sexualidade de uma mulher, que ela usa roupas provocativas e que pede atenção masculina. Com essa ideia o homem torna-se a vítima de uma “destruidora de lares” que ainda brinca de boneca, apesar de ter sim sexualidade, ainda que muito diferente da de uma mulher adulta.

Enquanto garotos são, desde muito novos, estimulados a vocalizar e a agir em favor de seus “instintos”, inclusive sexuais, garotas são ensinadas a manter o recato. Logo, quando a menina se mostra mais expansiva, é considerada culpada de “aguçar” o desejo masculino – na visão da sociedade, aparentemente, não interessa se essa menina tem apenas 16 anos e seu comportamento é típico de uma adolescente. Raramente a responsabilidade do homem adulto, o qual deveria zelar pela integridade da adolescente e não a abordar com intenções sexuais, é colocada em pauta e questionada. 

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Leitura recomendada:

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans


Como já devem ter notado pelas redes sociais, hoje é o Dia da Visibilidade Trans (na foto, a lindíssima Raquel Virgínia, uma das vocalistas da banda As Bahias e a Cozinha Mineira). A data vem para nos lembrar da luta - esta, diária - das pessoas trans para que seus direitos básicos sejam garantidos em uma sociedade que pouco ou nada faz para acolhê-las.

Há algumas notícias boas no que concerne principalmente à adoção do nome social por parte de algumas instituições, além de histórias pessoais inspiradoras. Mulheres como Maria Clara Araújo, Sofia FaveroDaniela Andrade, entre outras - e outros também - expõem a realidade trans e escrevem sobre suas experiências de forma esclarecedora e contundente, militando diariamente pelo direito de ter suas identidades legitimadas.

Por outro lado, os dados continuam a assustar: só neste 2016 foram registradas, até o momento, 56 mortes de mulheres trans! Ao lado desse número encontramos ainda comentários discriminatórios e que estimulam ainda mais o ódio ao sujeito transgênero. Um exemplo é a postagem, feita no Facebook, por um professor da Unicamp, a qual ele parece ter apagado após reclamações:


Esse professor não deixa clara somente sua intolerância, mas também seu desconhecimento do funcionamento da língua - que é extremamente maleável e está em constante transformação - e, principalmente, sua desatualização em relação à biologia. Como se não bastasse, é antiquado o suficiente para falar em roupas "de garoto", como se uma travesti precisasse usar roupas "femininas" para ter sua feminilidade reconhecida.

O conceito de "travesti" ao qual o professor se refere não é mais usado há muito tempo; à pessoa que se transveste chamamos "cross-dresser". Estudos sobre o grupo social ao qual hoje denominamos "travestis" vêm sendo feitos desde os anos 1990 e a denominação foi apropriada em toda a América Latina por travestis ativistas já naquela época. 

Sobre a questão biológica, não nos esqueçamos, existe também um número considerável de estudos tanto sobre a inconformidade entre corpo e mente que é classificada como "transexualidade" como sobre o amplo espectro sexual de espécies diversas, comprovando a não limitação ao mero binômio homem/mulher ou macho/fêmea. Além do mais, um sujeito que ignora a existência da transgeneridade invalida, ainda, inúmeras culturas ao redor do mundo nas quais, desde a antiguidade, expressões de gênero para além da masculina e da feminina são reconhecidas.

Em suma, esse professor revela desconhecer os processos de formação e modificação da linguagem, os estudos médico-biológicos a respeito do tema, além das ciências sociais e antropológicas que legitimam o sujeito trans. Não se trata, dessa forma, de alguém capaz de tecer comentários sobre essa questão.

A travesti que entra no banheiro feminino não está tomando o espaço de ninguém. Se a mulher que está no banheiro (no caso, o relato é da esposa do professor) sente que seu espaço está sendo tomado pela presença de outra pessoa isso significa que aquela mulher não sabe dividir o espaço com as diferenças - para ela, somente as mulheres iguais à ela devem dividir o mesmo banheiro. Afinal, se a mulher que se incomodou preocupa-se com um assédio, ela está cometendo um pré-julgamento com base no estereótipo da travesti "barraqueira"; essa mulher deve sentir-se preocupada, também, se uma mulher com roupas "de garoto" entrar no banheiro por aparentar masculinidade, ou com uma mulher que entre usando roupas sujas, por aparentar pobreza. Para esse tipo de pensamento não há outro nome: é discriminação. 

Sabemos que o conservadorismo emerge com mais força quando se vê afrontado por mudanças. Indivíduos conservadores têm medo do novo, têm medo de ser obrigados a conviver com as diferenças, pois são elas que revelam o quão frágeis são seus pensamentos e suas "verdades absolutas" (para maiores informações, ver: Como conversar com um fascista, de Márcia Tiburi).

Meu último recado é para as mulheres que precisarem usar um banheiro público à noite: se encontrarem uma travesti, aproveitem a oportunidade para fazer uma nova amizade. E se o lugar for deserto, não se esqueça de propor: "vamos juntas?".