sábado, 30 de setembro de 2017

Censura seletiva e medos direcionados


Mais uma vez, a arte foi alvo de uma histeria coletiva provocada pela distorção da realidade e, claro, reforçada pela eterna preferência por se manter a desinformação. O empenho em se proteger a família tradicional, a moral e os bons costumes consiste em apontar as armas para casos que são convenientemente tirados do contexto e transformados em crime - ao que parece, a acusação preferida tem sido a apologia à pedofilia. Sem perder de vista, claro, que tudo isso é coisa de comunistas...

A performance do artista Wagner Schwartz, uma releitura da série "Bichos", de Lygia Clark, envolvia a interação. Com base na proposta de Clark de um organismo vivo com o qual o público possa interagir e promover uma integração, Schwartz se apresenta, primeiro demonstrando o ato com um origami (reprodução de um dos "Bichos") e, posteriormente, colocando a si mesmo na posição de objeto-origami, organismo vivo que pode ser manipulado.

A nudez de Schwartz representa uma vulnerabilidade, não havendo conotação erótica alguma. Que um corpo nu esteja disposto e possa ser visto é fruto de tabu até mesmo nos dias atuais, mas o contexto em que esse corpo se apresenta dificilmente dá margens para atos libidinosos.

A apresentação realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo foi restrita a convidados (dentre eles, uma garota de 5 anos que foi à mostra com a mãe, sendo a única criança presente) e a própria instituição se encarregou de alertar sobre a nudez em questão.

Em agosto, Schwartz se apresentou no Goethe Institut em Salvador e, na ocasião, foi permitida a entrada de crianças acompanhadas de seus pais. E, nas palavras do curador do evento que ocorreu na Bahia, Jorge Alencar, "em nenhuma dimensão La Bête, fruto de um trabalho muito sério, tem conexão com sexualidade e erotismo". Ele aponta ainda que "houve harmonia entre crianças e adultos. Estamos certos que a arte entende o corpo nu muito além do sexo. Somos nós. É lugar de resistência e de liberdade. Com essa onda conservadora potencializada pelas redes, o nu é culpabilizado".

Pior do que enxergar perversão onde há apenas a nudez é querer determinar o que é ou deixa de ser arte com base em princípios morais, além de interpretar livremente a lei, a fim de encontrar pedofilia no ato - e, segundo uma protestante conservadora em vídeo que roda pela internet, houve até orgia com crianças. De repente, artistas, curadores, professores e até mesmo juristas - caso estes não concordem com as acusações de conservadores - são burros, despreparados, comunistas doutrinadores alienados.

Enquanto isso, os verdadeiramente esclarecidos cidadãos de bem lutam suas batalhas devidamente selecionadas por políticos e pastores.

*charge por Ribs: https://www.facebook.com/matheusribsoficial

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Caos e caça às bruxas


Faz tempo que não encontro palavras para escrever aqui. É um misto de cansaço, falta de tempo, excesso de tarefas e muita ignorância vista no dia a dia da internet, esta última tomando proporções absurdas nos últimos dias, com a polêmica do "QueerMuseu" e o falso alarmismo criado pelo MBL em parceria com cristãos conservadores.

Eu estudei - muito - sobre "queer" durante o mestrado e continuo a estudar sobre esse tema, porque sei que ele é alvo de críticas e das acusações mais bizarras, não apenas por parte de conservadores, mas também por membros da comunidade LGBT e por ativistas do feminismo que propagam inverdades como a de que o "queer" defende a pedofilia.

Em julho, durante o pouco que tive de férias, pude reler um livro chamado "Cultura do medo", do sociólogo Barry Glassner, em que ele mostra como nossa cultura tem cada vez mais se voltado para o fomento do medo, do temor, da insegurança, principalmente por conta da maneira como os veículos de comunicação funcionam, transformando histórias pontuais em exemplos do perigo constante que o cidadão corre e distorcendo dados para comprovar essa realidade criada por eles mesmos.

O argumento de Glassner é que é muito mais lucrativo manter o cidadão com medo - fazendo com que ele compre armas, caros sistemas de vigilância, seguros de vida... - e, para isso, eleger inimigos específicos - como os negros que vivem nas periferias e as drogas -, tirando os fatos de seus devidos contextos e transformando-os em perigos absolutos, o que serve bem a muitos políticos em suas candidaturas. (Adendo: o livro se refere aos Estados Unidos na década de 1990 e início dos anos 2000, mas o argumento cai como uma luva para a atual situação brasileira, em que Bolsonaros e Felicianos se beneficiam do pânico moral causado pelo sensacionalismo da mídia em detrimento de grupos minoritários específicos.)

O "queer" é um desses inimigos e, como foi possível testemunhar nesta última semana, sua demonização é bastante conveniente. Por se tratar de um posicionamento amplo e sem uma definição precisa, o "queer" - e a Teoria Queer - pode ser aplicado de muitas formas para justificar comportamentos e escolhas identitárias variadas. E se grupos conservadores ou ativistas podem moldar seus escritos e teorias para provar seus argumentos contrários ao "queer", é óbvio que grupos obscuros também podem fazer o mesmo para tentar validar seus atos - e, sim, refiro-me a defensores da pedofilia e da zoofilia!

Afinal de contas, é muito fácil recortar parágrafos e trechos de livros de forma a usá-los para propósitos aos quais eles não servem quando colocados em contexto - Derrida explica melhor essa questão ao abordar a citacionalidade. A verdade é que fazemos isso o tempo todo, não importa qual doutrina ou ideologia sigamos.

Pois bem, nesses anos em que venho me dedicando aos Estudos Queer (pelo menos desde 2011), o que vejo é uma gama de teorias e propostas bastante complexas que têm como prioridade o questionamento das regras que nos são impostas como "naturais", daquilo que nos é colocado como "normal". Se eu me deparei com defesa da pedofilia? Uma única vez, por um grupo de homens heterossexuais, em nada relacionados ao movimento LGBT. Defesa da zoofilia? O grupo que vi defendendo essa prática não evocava, em momento algum, a Teoria Queer.

E que fique bem claro: eu, que considero os Estudos Queer uma excelente ferramenta de questionamento do status quo da sociedade e das imposições de gênero e sexualidade que transformam os sujeitos em receptáculos de regras, abomino ambas as práticas e defendo que sejam consideradas crimes em qualquer lugar do mundo. Mas acho necessário falar sobre elas com objetividade e distanciamento, entendendo que elas existem e sempre existiram, pois a única forma de lidar com o problema é compreendendo as condições que permitem sua emergência.

Com a Teoria Queer, temos a possibilidade de, como pesquisadores e professores, falarmos não apenas das diferenças de gênero e sexualidade aceitáveis, mas também de abordarmos coisas abjetas e moralmente condenáveis por um viés crítico, sendo uma importante ferramenta de discernimento para aqueles que têm maturidade o suficiente para lidar com as complexidades da teoria propriamente dita.

Quanto à exposição "QueerMuseu", que o Santander decidiu cancelar por pressão de um grupo formado por uma direita de pretensos liberalistas não-liberais que decidiram se aliar a conservadores e cristãos picaretas, o propósito me parece o mesmo: refletir sobre o que nos é imposto em relação a expressões de gênero e sexualidades.

Sendo assim, um quadro como o de Adriana Varejão, intitulado "Cena de interior II", em que é possível observar uma pessoa segurando um animal enquanto a outra o penetra, mais duas pessoas brancas fazendo sexo com um negro e uma pessoa de aparência oriental em uma rede sendo penetrada por um negro, além de duas mulheres japonesas usando uma espécie de brinquedo sexual, é uma representação da realidade. Cabe a quem contempla a obra interpretá-la.


O que eu vejo, na pintura, são cenas de práticas que, de fato, acontecem. O negro, desde o período da colonização, vem sendo usado como objeto sexual, abusado, estuprado, tanto para que permaneça em contínua posição de subjugado (uma vez que estupro tem mais a ver com poder do que com desejo sexual) quanto para "aliviar" a libido do colonizador que, assim, não precisa deflorar uma branca.

O sexo com animais tem sido uma prática comum no interior do país e não é raro nos depararmos com homens que fazem piada com o fato de já terem "transado" com galinhas, cabras, vacas, jumentas... Adriana Varejão não está fazendo apologia a nada disso, está apenas ilustrando esses casos. Não à toa, o quadro pertence a uma série chamada "Histórias à margem", em que tudo aquilo que permanece escondido, omitido, é revelado. A própria artista já disse que não tem intenção de julgar se aquilo é bom ou ruim.

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Leituras adicionais:

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Documentário explora o caso de jovem que assassinou a mãe que a mantinha doente

Gypsy, com sua mãe, Dee Dee.

Um documentário  lançado em 15 de maio deste ano pela HBO, intitulado "Mommy Dead and
Dearest" ["Mamãe morta e querida", um trocadilho com o clássico filme "Mommie Dearest"], aborda a bizarra história de Gypsy Rose Blanchard que, aos 23 anos, planejou, juntamente com o namorado, o assassinato de sua mãe, Clauddine "Dee Dee" Blanchard, de 48 anos. Depois de Gypsy postar em sua página do Facebook, "aquela puta está morta", em 14 de junho de 2015, o corpo de Dee Dee foi encontrado em sua casa, na cidade de Springfield, Missouri.

Na medida em que as investigações da polícia avançaram, o que se descobriu foi um caso de abuso e aprisionamento da filha, a quem a própria mãe mantinha doente e em uma cadeira de rodas.

Clauddine era querida por seus vizinhos e sempre aparentou ser uma mãe amorosa e cuidadosa com sua filha, Gypsy, uma garota de saúde extremamente debilitada desde a infância. Mas, na verdade, Dee Dee sofria da Síndrome de Münchhausen por procuração, o que a levava a criar histórias sobre si e sobre sua filha, bem como a forjar as doenças da jovem.

O pai de Gypsy, Rod Blanchard, separou-se de Dee Dee um pouco antes do nascimento da filha, em 1991. À época, o casal vivia em uma pequena cidade chamada Golden Meadow. Ele alega que a garota parecia perfeitamente saudável, mas sua mãe se convenceu, quando ela tinha apenas 3 meses de idade, que o bebê sofria de apneia do sono e que parava com frequência de respirar durante a noite. Foi quando começou a ser levada ao hospital, ato que Clauddine repetiria inúmeras vezes, mesmo que os médicos não encontrassem nada de errado com Gypsy.

Dee Dee convenceu Rod de que os problemas de saúde da filha eram causados por um defeito cromossômico. Tendo trabalhado como assistente de enfermagem, a mãe parecia ter bastante conhecimento médico e saber sobre tudo o que se passava com Gypsy. Após um desentendimento com sua família, acusada de ter falsificado a assinatura de cheques do pai, Dee Dee se mudou com a menina para Slidell, onde continuou a visitar médicos e hospitais, dizendo que Gypsy sofria convulsões ocasionais, de forma que a garota passou a tomar remédios anti-convulsivos.

Dee Dee insistia em dizer também que a filha tinha distrofia muscular, mesmo que exames e biópsias não acusassem nada. Segundo a mãe, havia problemas também com a visão e frequentes infecções no ouvido, o que levou os médicos inclusive a operarem a menina diversas vezes.

Gypsy era constantemente levada ao hospital por sua mãe.

Quando o furacão Katrina devastou a cidade de Slidell, Dee Dee buscou ajuda em um abrigo para deficientes. Tendo sua casa destruída, ela confirmou que havia perdido todo o histórico médico de Gypsy e ganhou a confiança e compaixão de uma das médicas do abrigo, Janet Jordan. Jordan sugeriu, em 2005, que Dee Dee tentasse recomeçar a vida no Missouri.

De aparência frágil e em uma cadeira de rodas, Gypsy chamava a atenção por sua história triste e aparecia em noticiários e eventos beneficentes, nos quais ela e a mãe sempre estiveram envolvidas. Organizações de caridade ofereceram a elas voos gratuitos e estadias em casas de apoio pelo país, na tentativa de encontrar o melhor tratamento para Gypsy. A garota ganhou até mesmo um passeio na Disney e uma série de presentes.

Além disso, Clauddine insistia que a filha não sabia qual era sua própria idade, alegando atraso mental. De acordo com o jornal Daily Mail, Dee Dee fornecia datas de nascimento diferentes para se registrar em programas de apoio e a polícia encontrou evidências de que ela não foi, de fato, vítima do furacão Katrina.

Tudo começou a vir à tona quando Aleah Woodmansee, uma amiga de Gypsy, procurou a polícia. Filha de uma investigadora médica (responsável por verificar alegações de pacientes), Aleah acabou se aproximando da jovem e elas se tornaram confidentes. Gypsy contava a ela, através de uma conta do Facebook de nome Emma Rose, sobre o quanto sua mãe era superprotetora e que estava em contato com um garoto que conheceu em um site cristão de namoro, mas que não podia contar nada a Dee Dee.

O relacionamento de Gypsy com Nicholas Godejohn se manteve online por cinco anos, até que começaram a falar sobre a possibilidade de "se livrar" de Clauddine para finalmente ficarem juntos. Foi Godejohn quem esfaqueou Dee Dee enquanto Gypsy se escondia no banheiro.

O casal fugiu para o Wisconsin, mas foi capturado depois de a polícia rastrear o endereço de IP das postagens de Facebook que continuaram a fazer.

Gypsy e Nicholas planejaram a morte de Dee Dee para que pudessem ficar juntos.

O pai de Gypsy disse ter ficado surpreso quando viu a filha entrar andando no tribunal - descobrindo, finalmente, que ela não sofria de distrofia muscular e que era forçada por Dee Dee a se locomover em cadeiras de rodas. A jovem aceitou um acordo para confessar o assassinato da mãe e foi condenada, em julho do ano passado, a 10 anos de prisão. Godejohn, por sua vez, está cumprindo prisão perpétua por homicídio em primeiro grau.

Gypsy entrou caminhando em seu julgamento, embora sua mãe insistisse em mantê-la na cadeira de rodas. Aparentemente, a jovem é perfeitamente saudável, mas Dee Dee a mantinha doente.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Itaberlly somos nós

Itaberlly Lozano foi assassinado no dia 29 de dezembro. Seu corpo foi encontrado, carbonizado, no dia 7 de janeiro, em um canavial próximo à cidade de Cravinhos, interior de São Paulo.

A principal autora do crime foi Tatiana Ferreira Lozano Pereira, de 32 anos, mãe do jovem. Depois, com a ajuda do marido, padrasto de Itaberlly, livrou-se do corpo. Antes do assassinato, foi espancado por rapazes contratados por Tatiana para dar "uma lição" no adolescente.

No primeiro depoimento à polícia, a mulher disse que "não aguentava mais" o garoto, com quem entrava em conflito com frequência. Alegou que já teria sido ameaçada e agredida, além de dizer que o filho era usuário de drogas e levava homens desconhecidos para dentro de casa. O tio de Itaberlly por parte de pai, contudo, relata que a causa da tensão entre o garoto e Tatiana era o fato de ela não aceitar a homossexualidade do filho.

De fato, o adolescente já havia denunciado a mãe ao Conselho Tutelar, o que aponta para a violência contra o filho não se tratar de algo novo.

Um dia depois do Natal, o jovem foi agredido e postou em sua página do Facebook um desabafo, acusando sua mãe de ter ordenado a alguns rapazes que o agredissem. Então, Itaberlly decidiu sair de casa e ir para Franca, morar com a avó e o tio paterno (o pai do adolescente faleceu há 4 anos). No dia 29 de dezembro, após conversar com a mãe por telefone, o jovem resolveu voltar para sua casa, sem saber que se tratava de uma emboscada.

Tatiana havia contratado três pessoas para agredir Itaberlly, como um "corretivo" e, segundo novo depoimento à polícia, ao notar o quanto ele havia sido espancado, achou melhor acabar com sua vida e ocultar o corpo.

O acontecido é chocante por inúmeros motivos para além do fato de uma mãe ter assassinado o próprio filho com três facadas no pescoço. A homofobia e a intolerância de Tatiana, que se diz cristã e, em seu Facebook, compartilhava frases religiosas e vídeos de cantores gospel, tem sido endossada por pessoas nos comentários das notícias sobre o assassinato. O que vemos nos discursos dos indivíduos são condenações ao comportamento do jovem e a sua orientação sexual, como se isso justificasse sua morte.


A culpabilização da vítima é algo com o que, infelizmente, estamos acostumados e, por vezes, compartilhamos na forma de julgamentos mais duros destinados aos que sofreram do que aos algozes. Homossexuais são culpados quando agredidos por "dar muita pinta", mulheres são culpadas quando assediadas por exporem demais o corpo, travestis e pessoas transgênero são culpadas simplesmente por serem quem são, como se sua mera existência fosse desencadeadora óbvia de violência.

Não raro, esse tipo de intolerância disfarçada de opinião vem ainda atrelada à defesa da moral e dos bons costumes, dos valores cristãos e de princípios que devem guiar a conduta do "cidadão de bem". Tatiana é o perfeito exemplo disso.

Quando a sociedade aceita discursos que indicam um preconceito recalcado, seja na forma de chacotas ou de julgamentos velados, quando pessoas insistem em usar a máxima da opinião para encerrar discussões sem que tenham de reconhecer as discriminações por trás de suas crenças, permite-se que a exclusão e o ódio contra minorias tenha continuidade.

Precisamos admitir, com urgência, o quão tênue é a linha que separa o discurso da ação, a fim de expor o papel da fala na perpetuação de preconceitos - afinal, falar é agir. Não se trata de exigir o "politicamente correto" - esse conceito tão vago e impreciso, usado indiscriminadamente pelo senso comum -, mas de perceber que a banalização de descriminações e exclusões sociais se refletem na fala, a qual expressa nossos pensamentos e crenças.

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Mais informações:

domingo, 27 de novembro de 2016

Desconstruções de gênero ou reforço de construções passadas?

A dificuldade de determinar minha identidade de gênero - a qual é uma exigência social - levou a uma série de questões e dilemas sobre os quais até hoje não sou capaz de responder. Não me vejo como uma pessoa cisgênero porque não sou uma mulher - pelo menos não estou de acordo com essa designação e com nada do que é colocado sob o conceito de "mulher" e, pensando na clássica frase de Simone de Beauvoir, eu falhei em me tornar mulher. Porém, não estar de acordo com o gênero que me foi designado também não significa que eu me identifique com o gênero masculino, aquele que ocupa o outro espectro do binário.

Pensando na fluidez, no trânsito, no eterno processo de negociação de minha identidade de gênero e dos papéis que assumo, no fato de usar meu corpo como um lugar de experimentação sem assumir características definitivas, depois de uma vida procurando compreender em que lugar me encontro e diante da pressão, por parte da sociedade, por assumir uma identidade, assumo, então, uma identidade não-binária.

Em primeiro lugar, não ter uma identidade cisgênero, para mim, não é o mesmo que automaticamente ter uma identidade transgênero. Eu não posso, em absoluto, falar pela comunidade trans como "representante". Se existem pessoas que me consideram como alguém trans, isso parte de uma noção bastante complexa que está relacionada com a história e a evolução dos Estudos Queer e de movimentos pela diversidade sexual e de gênero que ainda lutam por estabelecer consensos que, na verdade, têm mais a ver com uma obsessão humana pela classificação como recurso didático.

Tendo explicado meu lugar de fala, pretendo entrar na discussão sobre desconstruções de gênero e como, até para algo que se pretende questionador, existem pessoas capazes de incorporar um estereótipo na busca por assumir um posicionamento que lhes parece "legal" ou "moderno".


Minha primeira atitude, diante dessa caricatura, foi a de unir imagem e texto, contextualizando o painel como um todo. Temos, aqui, um indivíduo que se identifica como trans ("eu também sou trans"; "eu não sou homem, meu gênero é...") e que parece tomar o cuidado de não se colocar no lugar de mulheres. Contudo, essa aparente consciência sobre seu "lugar de fala" como "não-mulher" não parece existir quando o posicionamento diz respeito às pessoas trans. Ou seja, esse indivíduo não vê problema em falar por pessoas trans.

Esse sujeito também não se considera apropriador da cultura negra porque seu "avô era negro", mas não leva em conta que sua pele clara faz com que ele não possa falar por pessoas negras e que deve tomar cuidado ao colocar sua ancestralidade em pauta.

Outra palavra, ali, indica um comportamento machista e opressor: "gaslighting". O indivíduo que pratica o gaslighting é aquele que distorce ou omite informações para desmerecer a fala do outro. É, portanto, o sujeito que acusa uma mulher negra de ser agressiva quando ela lhe chama a atenção para a apropriação cultural, por exemplo, ou que acusa travestis de serem exageradas e histéricas, prejudicando a aceitação de pessoas trans, ou ainda que se sente atacado por feministas quando elas problematizam sua identidade de gênero.

Levando em conta todo o conjunto que envolve atitude, discurso, identificação e posicionamento por conveniência, a princípio, vi na imagem a reprodução de um estereótipo que tem se reafirmado recentemente. Trata-se da pessoa que promove uma banalização da desconstrução ao assumir, forçosamente, uma superfície "destruidora de gêneros" que não passa disso: de uma superfície. Trata-se do sujeito que nunca passou por experiências de opressão, muito menos pelo sofrimento psíquico que vem com a percepção de uma identidade de gênero destoante e com a busca pela auto-aceitação de grupos que, historicamente, são vistos com tamanho desprezo que internalizam a depreciação sem ter o direito de existir como sujeitos.

Mas há um outro ponto de vista que tira essa caricatura da qualidade de uma crítica válida para a da de uma abordagem preconceituosa que invalida a multiplicidade das expressões trans. Afinal, existem mulheres trans e pessoas não binárias que, de alguma forma, encaixam-se na aparência física do sujeito ali desenhado. A diferença é que a postura dessas pessoas não parte de uma "atuação" artificial e superficial. Há mulheres e homens trans que não se adequam ao que a sociedade espera de alguém transgênero, simplesmente porque, como qualquer outra categoria, nela está comportada uma grande diversidade.

A noção de uma pessoa trans "de verdade" está completamente baseada na medicalização da condição transgênero, que determina um "diagnóstico" pautado na infelicidade total com o próprio corpo e na necessidade de uma transição tipificada, que envolve hormonização, cirurgias e a adequação total ao gênero com o qual a pessoa se identifica.

O grande problema é que grande parte das pessoas trans não se encaixa nessas regras médicas apontadoras de uma disforia, responsáveis pela forma como enxergamos, até hoje, a transgeneridade como condição patológica. Assim, espera-se que transgêneros sigam uma norma, a qual os direcionaria a uma coerência corporal a fim de que se aproximem do ideal cisgênero.

Que homens se importem em questionar as normas de gênero e em desconstruir suas próprias masculinidades é algo positivo, mas até que ponto essa é só uma atitude que não necessariamente configura uma identidade? Em que medida se dizer trans para negar sua masculinidade pode prejudicar um movimento legítimo e múltiplo que vem lutando contra o controle exercido pelas instituições sobre seus próprios corpos? Como saber se esses indivíduos estão assumindo o protagonismo que deve ser dado a outras pessoas simplesmente por uma vontade de ser diferente?

O limite entre representação e desinformação baseada em percepções equivocadas ou generalistas é muito tênue, daí a necessidade de sempre retomarmos o debate sobre o "lugar de fala". A quem cabe a crítica ao estereótipo de um "destruidor dos gêneros"? Certamente, não às pessoas cisgênero, privilegiadas por seus corpos "lógicos" e "coerentes".

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Não se combate o sistema elegendo Trump



É preciso admitir: a vitória de Hillary Clinton daria continuidade ao sistema político estadunidense, controlado por grandes bancos e investidores. A manutenção de um capitalismo cruel, nas mãos de uma elite, que toma as reais decisões e manipula os governantes, de fato, aconteceria com a eleição da candidata. Não podemos ser ingênuos de achar que ela traria grandes mudanças, nem que beneficiaria efetivamente os mais pobres e as minorias, afinal, ela é uma participante de um jogo de interesses que está muito além do que nos é trazido pelos noticiários.

Nesse sentido, é até possível compreender que indivíduos insatisfeitos com o falido sistema político dos Estados Unidos tenham optado por apoiar Trump como o "menos pior", por ele não ser um dos peões nas mãos dos bancos e investidores, fator que pode ter levado ao apoio do candidato por muitas pessoas da esquerda.


O filósofo Slavoj Zizek chegou a afirmar, em entrevista, que Clinton representa apenas "mais do mesmo", alguém que mantém laços suspeitos em Wall Street, e que sua eleição simplesmente manteria o país em seu estado de inércia. Ele acredita, ainda, que as políticas de Trump não são, necessariamente, péssimas, citando como exemplo a fala do candidato sobre a necessidade de se repensar o impasse entre Israel e Palestina. Para Zizek, Clinton é "o real perigo".


Se, por um lado, Trump representa a indignação de muitos com o sistema e uma tentativa de romper com a inércia, por outro, como sujeito, ele é símbolo de algo perigoso: a sanção da violência opressora e da intolerância. Trata-se de algo paradoxal, uma vez que a vitória de Clinton significaria a continuidade da opressão do capital e de uma violência mascarada e/ou dissimulada.


O problema está na forma como Trump tem se portado ao longo de todo sua vida, o que acaba por se tornar um exemplo a atestar que alguém ser machista, racista, xenofóbico, orgulhosamente ignorante e sem filtros é algo "passável" se você está contra o sistema dominante. Além do mais, Trump pode até não ser parte desse sistema, mas é, sem dúvidas, um beneficiado por ele. Se, como afirma Zizek, Hillary é perigo real, Trump não pode ser visto como inofensivo ou como um perigo "irreal".


Não se combate um sistema cruel elegendo um homem acusado de cometer abusos por diversas mulheres (há relatos feitos desde 1980), que se gabou de assediá-las e que fez declarações públicas sobre não se importar com o que as jornalistas escrevem a respeito dele, contanto que tenham belas bundas (ele disse, para a Esquire magazine: "You know, it doesn't really matter what [they] write as long as you've got a young and beautiful piece of ass."). Não se combate um sistema cruel elegendo um homem que mente com facilidade e que tem orgulho de ser ignorante, de não gostar de ler - sendo que é fundamental, a um presidente, estudar diariamente.


Independentemente do que Trump realmente pensa - ou de como irá agir -, seu discurso durante a campanha eleitoral teve ressonância direta entre indivíduos sedentos por acabar com políticas sociais e por retomar seus privilégios, sob a justificativa de tornar a América grande/ótima novamente. Por causa do discurso proferido por Trump em sua campanha, muitos se acham no direito de agredir física e verbalmente pessoas que pertencem a grupos minoritários diversos, simplesmente porque o novo presidente do país falou a favor de suas ideias e as encorajou.


Negros, latinos, homossexuais, pessoas transgênero, muçulmanos, imigrantes, todos que não pertencem ao grupo de brancos cristãos heterossexuais estão vivenciando um momento aterrador, de proliferação da violência na forma de ameaças, ofensas, agressões físicas e humilhações múltiplas que deixam claro o quanto a sociedade estadunidense continua sendo governada pela discriminação.


Posicionar-se contra Hillary Clinton porque ela representa a continuidade do sistema mais capitalista e dominador do mundo é perfeitamente inteligível, mas apoiar Trump, acreditando que ele simboliza o descontentamento com esse mesmo sistema é incompreensível, uma vez que nem sabemos, de fato, o real posicionamento de um candidato famoso por sua conduta altamente questionável. Por mais que acreditemos na ignorância em relação ao jogo governamental como uma forma de romper com a atual hegemonia, pensar em Trump como uma opção viável é tão ingênuo quanto defender Clinton como a candidata ideal.


Grupos minoritários que continuam a fazer oposição a Trump, declarando apoio a Clinton, não acreditam que ela vá ser a presidente perfeita, mas têm uma crença de que a luta contra ela não envolva tanto medo quanto a luta que agora ocorre não apenas contra Trump, mas contra todos os que acreditaram em seu discurso e têm exercido livremente o racismo e a discriminação, como se fossem atos sancionados na própria figura do presidente.


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Mais leituras:

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A perseguição a LGBTs no regime militar

[Este post reúne dois textos meus que tratam do tema. Tenho a intenção de fazer uma espécie de dossiê futuramente, mas é um trabalho a ser completado a longo prazo. Decidi por colocá-los aqui para facilitar a quem eventualmente faça uma pesquisa e precise consultar os dados.]

Operação Tarântula: A caça às travestis no Brasil durante os anos de 1970 e 80

O regime militar foi especialmente duro com LGBTs. Após a abertura política, policiais continuaram a "caçar" travestis com o apoio da sociedade.

As travestis definitivamente fazem parte do imaginário cultural brasileiro. Estão nas ruas, na televisão e formam um grupo social único de complexa definição. Apesar de toda sua visibilidade, isso não significa que são aceitas socialmente - muito pelo contrário, representam um dos segmentos mais discriminados e marginalizados da comunidade LGBTTT.
A expressão de gênero feminina não confere unanimidade às identidades de gênero adotadas pelas travestis: algumas se identificam como mulheres; outras, como um terceiro gênero entre o masculino e o feminino; há ainda aquelas que se dizem homens homossexuais (talvez reproduzindo um senso comum ainda veiculado pelos meios de comunicação).
De fato, historicamente, algumas travestis adotaram uma aparência feminina para conquistar mais clientes no mercado da prostituição, que por vezes se apresenta como único meio de subsistência para homossexuais efeminados nascidos em famílias pobres e que não puderam pagar por uma educação de qualidade. Mas há também as mulheres trans que não têm condições de pagar pelo processo de transição adequado e recorrem a meios mais baratos para conquistar o corpo que tanto desejam. Há até mesmo aquelas mulheres que não almejam a cirurgia de redesignação genital e abraçam a ambiguidade de gênero que acaba por caracterizar a travesti que figura na mentalidade popular.
No Brasil governado por militares, não é de se estranhar que essas pessoas tenham se tornado alvo de perseguição juntamente à comunidade homossexual (como foi o caso também dos negros, associados à "vadiagem" e "malandragem"). Apesar de muitas, à época, trabalharem na indústria do entretenimento como transformistas, a maioria absoluta recorria à prostituição para se manter e, por esse motivo, travestis eram automaticamente consideradas criminosas.
Segundo conta o livro Ditadura e homossexualidades, organizado por James N. Green e Renan Quinalha, no início dos anos 1970 a polícia civil passou a fazer rondas para reprimir a criminalidade nas grandes cidades, por meio de blitz. Assim, apreendiam LGBTs nas ruas sob a justificativa de averiguação (naquela época, havia uma lei contra a "vadiagem", que era usada como motivação para deter essas pessoas).
A partir de 1976, a polícia civil de São Paulo passou a estudar e a combater travestis. O delegado Guido Fonseca, responsável por uma pesquisa em criminologia envolvendo essas pessoas que chamava de "pervertidos" determinou, então, que toda travesti devia ser levada à delegacia para que fosse fichada e tivesse sua foto tirada "para que os juízes possam avaliar seu grau de periculosidade".
Além da repressão oficial, as décadas de 1970 e 80 testemunharam uma onda de assassinatos brutais de pessoas LGBT, algumas delas bastante conhecidas, como o diretor de teatro Luíz Antônio Martinez Corrêa, irmão de Zé Celso. Em 1987, a polícia deu início à Operação Tarântula, com o objetivo principal de prender travestis que se prostituíam nas ruas de São Paulo. Apesar de a operação ter sido suspensa pouco tempo depois, travestis passaram a ser assassinadas misteriosamente, a tiros.
Além da suspeita que recaiu sobre policiais, houve desconfiança da ação de grupos anti-gays que se manifestavam abertamente e, não raro, a própria população era favorável à matança como uma forma de "higienização" das ruas da cidade. Declarações mostradas no documentário Temporada de caça, dirigido e produzido por Rita Moreira (veja abaixo), dão a dimensão de como o ódio generalizado predominava na sociedade e, de certa forma, sancionava uma verdadeira caçada às minorias sexuais.
Conhecer esse período tenebroso da história brasileira é importante para que fiquemos atentos a novas movimentações semelhantes de ataques à comunidade LGBT - que podem começar como uma simples defesa à liberdade de expressão e ao direito de "não gostar de homossexuais". A linha entre a livre manifestação de um ponto de vista preconceituoso e a ação pode ser mais tênue do que imaginamos.

*Texto originalmente publicado em: Blasting News

Durante o regime militar, LGBTs sofriam maior perseguição

Homossexuais, travestis e mulheres trans sofriam com tortura e assédio sexual por parte de oficiais.

As narrativas que emergem desde o fim do Regime Militar, em sua maioria, dizem respeito a ativistas políticos e intelectuais que criticavam a ditadura, pouco se falando sobre a situação vivida por minorias sociais como negros, pessoas LGBT e prostitutas, que habitavam uma espécie de submundo urbano.
Em 1969, por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores instalou a Comissão de Investigação Sumária, visando à perseguição de homossexuais, alcoólatras e pessoas consideradas emocionalmente instável dentro do Itamaraty. Ao todo, 44 indivíduos foram cassados a partir da declaração do AI-5, porque afrontavam os valores do regime em suas condutas privadas. Entre os diplomatas obrigados a pedirem demissão, 15 o fizeram em função de “prática de homossexualismo” e “incontinência pública escandalosa”, e outros 10 conduzidos a fazer exames médicos e psiquiátricos para se comprovar as suspeitas que sobre eles recaíam, justificando seu afastamento.
A ideia de repressão ao crime levou à criação de diversas operações policiais voltadas para a abordagem de indivíduos “suspeitos” a qualquer hora do dia. As rondas que, no auge do regime militar, dedicavam-se a combater as guerrilhas, voltaram-se para a realização de blitz que tinham, entre seus alvos preferenciais, negros, pobres e LGBTs com frequência detidos para averiguação conforme a interpretação da lei por cada investigador.
Nos anos de 1976 e 1977, a polícia civil desenvolveu um estudo de criminologia tendo as travestis como objeto de pesquisa, sob comando do delegado Guido Fonseca, registrando 460 delas, das quais 398 chegaram a ser levadas para interrogatório. Cada travesti fichada precisava assinar um termo no qual constavam profissão, ganho mensal, gastos com hormônios e aluguel, entre outras informações. As tentativas de implantar políticas de higienização na cidade se prolongaram também pela década de 1980, contando com o apoio de grande parte da população, a exemplo das Operações Cidade, Limpeza e Tarântula.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade conta que esse processo de higienização urbana resultou em pelo menos 1,5 mil prisões somente na cidade de São Paulo. As travestis eram os alvos principais de espancamentos, humilhações e extorsões, sendo com frequência obrigadas a fazer sexo com policiais em troca de liberdade.
Em relato durante o 2º Workshop Regional da Rede Trans Brasil, que aconteceu em Uberlândia no dia 22 de outubro, a mineira Sissy Kelly, hoje com 59 anos, contou sobre o medo constante de viver no regime. Não raro, para fugir, as travestis tinham de subir nos telhados das casas e ainda revelou que, às vezes, os policiais que as espancavam eram os mesmos que procuravam por seus serviços sexuais. Cada cidade tinha suas práticas e formas de humilhar as presas, que eram obrigadas a lavar os banheiros das delegacias, fazer sessões de sexo oral nos policiais, entre outros absurdos. Segundo Kelly, em Salvador, cabia a elas lavar os cadáveres recolhidos.
Marcelly Malta, de 65 anos, natural de Porto Alegre, também compareceu ao evento em Uberlândia para narrar suas memórias. Ela conta que mesmo trabalhando formalmente e saindo à rua com sua carteira de trabalho para mostrar aos oficiais, era apreendida e acusada de vadiagem, tendo sua carteira rasgada. Relata ainda que as colegas negras apanhavam ainda mais e era comum que simplesmente desaparecessem depois de abordadas por policiais.
A Operação Cidade foi deflagrada em 1980, durante o governo de Paulo Maluff, na cidade de São Paulo, sob o comando do delegado José Wilson Richetti, sob a justificativa de prender assaltantes e traficantes de drogas. No entanto, conforme noticiado pelos jornais à época, somente no primeiro dia da operação houve 152 prisões, sendo a maioria de prostitutas, homossexuais e travestis.
Se desejamos caminhar para uma sociedade mais tolerante, é de extrema importância que estejamos atentos a histórias de perseguição e também de omissão por parte de órgãos oficiais para que elas não se repitam.
*Texto originalmente publicado em: Blasting News
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Leituras complementares:

sábado, 17 de setembro de 2016

Resgatando a história LGBTTTQ

Walter Benjamin escreveu, em suas Teses sobre o conceito de história, que aprendemos, com a tradição dos oprimidos, que o "estado de exceção" é, na verdade, uma regra. Para as minorias sexuais, a violência e discriminação são habituais e a obtenção de direitos requer lutas intensas e longas, algo que fica bastante óbvio quando nos dedicamos a estudar o passado dessas pessoas e o comparamos a um presente não muito melhor - no Brasil e no resto do mundo.

1) The New York Times fala sobre a violência LGBTfóbica no Brasil
2) Ataques a LGBTs continuam recorrentes no Brasil
3) Ativista trans foi estuprada e queimada até a morte na Turquia
4) Operação Tarântula: a caça às travestis no Brasil durante os anos 1970 e 80
5) Conheça a história de Gisberta, trans brasileira assassinada em Portugal

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Quem é Biel? (ou "Precisamos rever nossa idolatria")



Eu nem sabia quem era esse garoto até surgir a notícia do assédio que ele cometeu e - maldita a minha curiosidade! - fui ao YouTube descobrir se conhecia algo dele. Honestamente, preferia não ter conhecido. Trata-se de um cara malhado que dizem ser parecido com o Justin Bieber, mas com uma voz infinitamente mais irritante e sem qualquer conhecimento musical (algo que, no caso de Bieber, justifica que ele se mantenha até hoje produzindo e evoluindo).

Por um lado, é bom saber que ele não vai durar muito e em pouco tempo não mais nos lembraremos dele. Por outro lado, ele é só mais um entre tantos artistas que cometem assédio em diferentes níveis e, ainda assim, quando sua atitude se repercute, acham-se no direito de se colocar como prejudicados. Biel é só mais um a reforçar a cultura do estupro e a reproduzir discursos preconceituosos e nojentos na mídia, sem sofrer represália alguma.

Hoje, repercutiram postagens que o "cantor" fez no Twitter, algumas delas já deletadas, provavelmente por aconselhamento da equipe que o acompanha. O que as postagens revelam é mais um garoto privilegiado que vê graça em discriminar e falar merda e que, conforme atestou o Huffington Post Brasil, não vai mudar, afinal, não lhe convém.

Ao lado de Biel, está uma quantidade imensurável de jovens que não enxergam as opressões que não sofrem e acham normal uma cultura de violência propagada principalmente pelo bullying. Uma lista de 10 motivos para não odiar o artista, feita por uma fã, serve como exemplo disso:

1. "Ele é gostoso, então merece ter tudo que tem e ter a mulher que quiser."
Obviamente, a primeira razão está em sua estética: se ele está dentro dos padrões estabelecidos para que um homem seja considerado atraente, ele tem privilégios. Soma-se a isso a ideia de que mulheres estariam apenas interessadas em homens malhados como ele e é impossível que não se sintam atraídas.
2. "Ele é um menino em fase de crescimento e comete erros."
A forma como enxergamos a questão da idade é, até hoje, desigual para homens e mulheres. Com 21 anos, ele é legalmente considerado um adulto e deve sofrer as consequências que um adulto sofreria. Socialmente, de acordo com o senso comum, a adolescência termina aos 18 anos de idade. Ainda socialmente falando, à mulher com 18 anos cabem muito mais responsabilidades e consequências, como se a maturidade fosse exclusiva do gênero feminino pelo menos até os, digamos, os 30 anos de idade.
3. "Ele vem sofrendo racismo brancofóbico".

Não vou comentar isso, né?
4. "Toda mulher gostaria de dar pro Biel e ser cantada por ele."

Eu, particularmente, não gostaria de dar pro Biel e nem de ser cantada por ele, ainda mais com essa vozinha chata e esse jeitinho arrogante. E aposto que encontro pelo menos um milhão de outras mulheres que também não gostariam.
5. "Ele se inspira no Justin. Ambos são percebidos por serem brancos e gostosos."

Se ele se inspirasse no Justin, poderia pelo menos ter aprendido música, ou a cantar. Ninguém é percebido por ser branco, mas por se portar de uma forma mais relacionada à cultura negra, mesmo sendo branco. Eu não gosto do Justin, mas ao menos eu acho que ele tem algumas qualidades. O Biel, não.
6. "Ele é hetero e todos os heteros merecem expressar sua sexualidade."

Expressar sexualidade é diferente de cometer assédio. Todos nós podemos expressar nossa sexualidade, mas não temos o direito de ofender diretamente a outras pessoas enquanto nos expressamos.
7. "Ele sofre preconceito por ser homem, hoje a moda é ser gay."

Também não preciso comentar isso, né?
8. "Ele é humilde e comeria uma mulher, mesmo se ela fosse feia."

Favor procurar no dicionário o conceito de humildade.
9. "Ele gosta de brincar com tudo."

"Brincar" é algo relativo. No humor, o chiste é uma brincadeira ou piada que tem como objetivo atingir a uma pessoa ou grupo específico, normalmente por meio de uma ofensa. Em suma, brincar com algo não significa que o indivíduo não esteja ofendendo, muito pelo contrário, uma estratégia bastante comum é o ato de mascarar a ofensa com a brincadeira, algo que indivíduos preconceituosos fazem com bastante frequência.
10. "Ele só respeita mulheres que se dão o respeito."

"Dar-se ao respeito" é outra questão altamente relativa. A meu ver, no vídeo da entrevista, a jornalista se deu ao respeito e foi bastante profissional, assumindo uma postura descontraída mas, ao mesmo tempo, impondo seus limites - tanto é que negou quando Biel se ofereceu para beijá-la.

A futilidade de cada razão proposta pela fã chega a ser risível, mas é preocupante notar que esses são os valores defendidos por muitos e muitas jovens. Muito provavelmente, isso faz com que sujeitos como o próprio Biel cheguem à fama, mesmo sendo pessoas abertamente desprezíveis. E tudo isso por causa de seu corpo.

Outra questão bastante assustadora é a fixação de Biel pelo estupro. A jornalista relatou que, depois de terminada a entrevista, o "cantor" disse que, se não tivesse que atender outros jornalistas posteriormente, a levaria ao hotel e a "estupraria rapidinho". Em seus posts no Twitter, o termo "estupro" é usado de forma banal.

Em entrevista, o recado de Biel à jornalista assediada reforça o caráter egoísta de alguém que não está acostumado à responsabilidade e procura apontar o outro como causador de efeitos que, na verdade, resultaram de seus próprios erros: “Eu queria primeiro deixá-la ciente do quanto ela prejudicou minha carreira. É um trabalho de anos, não só meu, mas de um grupo empresarial, de uma gravadora”. 


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Meninos já usaram vestidos e roupas rosas no passado

Franklin Delano Roosevelt, em foto de 1884: à época, as roupas para crianças eram neutras e não havia diferenciação entre o que seria mais adequado para cada gênero.

Você sabia que nem sempre a cor rosa foi associada à feminilidade e a azul à masculinidade? E que o vestido já foi uma roupa neutra para as crianças? Na verdade, por séculos, todas as crianças usavam um mesmo tipo de roupa até por volta dos 6 ou 7 anos de idade: vestidos brancos.

Segundo a historiadora Jo B. Paoletti, a adoção das cores rosa e azul, bem como outros tons pastéis para bebês aconteceu a partir da segunda metade do século XIX, mas não eram associadas aos gêneros. Somente no período da Primeira Grande Guerra Mundial a simbologia do gênero pelas cores das vestimentas passou a ser adotada, contudo, ainda levou um tempo para que as coisas chegassem ao ponto em que estão hoje.

Publicações das décadas de 1910 e 1920 revelam uma lógica diferente da atual: àquela época, o rosa era para os meninos, por se tratar de uma cor mais decidida e forte, ao passo que o azul, mais delicado e gracioso, deveria ser usado pelas meninas. Porém, os critérios não eram claros e variavam de acordo com o fabricante de roupas.

Na Alemanha, desde os anos 1920, orfanatos adotavam a cor azul para os meninos e a cor rosa para as meninas. Na Bélgia, na Suíça e até mesmo em algumas partes da Alemanha, fazia-se o contrário.

 A imposição de vestimentas específicas de maneira mais efetiva, como a conhecemos, só aconteceu na década de 1940 nos Estados Unidos, quando a moda infantil passou a ser vestir os garotos como seus pais e as garotas como suas mães. No que diz respeito às cores, as associações apenas deixaram de variar por volta das décadas de 70 e 80. Isso mostra que aquilo que temos por estável é, na verdade, uma construção bastante recente, além de arbitrária.

Nos anos 1960, com a emergência do movimento feminista, a tendência se voltou para roupas unisex que não reforçassem a feminilidade e uma fragilidade das garotas. Essa busca por uma vestimenta mais neutra, que não condicionasse as meninas desde cedo a papéis específicos - com roupas delicadas e que não permitiam a elas se movimentar livremente -, se manteve até a metade dos anos 80.

Com o surgimento do exame pré-natal que possibilitava conhecer o sexo do bebê bem antes de seu nascimento, os pais passaram a consumir roupas para seus filhos já tendo em mente seu "sexo". Obviamente, as empresas tiraram proveito desse avanço tecnológico para moldar estratégias de marketing que dessem aos consumidores em potencial a sensação de individualidade, o que resultou em grande aumento das vendas. A publicidade acabou por influenciar os gostos e por consolidar a diferenciação dos gêneros a partir das cores e das vestimentas, da mesma forma que aconteceu também com os brinquedos.

Fontes:




sábado, 23 de julho de 2016

Pastor coloca faixa incitando a morte de homossexuais na frente de igreja, na Bahia


Em Porto de Sauípe, litoral norte da Bahia, um pastor evangélico colocou, do lado de fora da igreja que dirige, mensagens condenando a homossexualidade, as quais estariam contidas na Bíblia. Na faixa, atribuída a Levítico 20:13, lê-se "Se um homem tiver relacionamento com outro homem, os dois deverão ser mortos por causa desse ato nojento; eles serão responsáveis pela sua própria morte". Há ainda uma outra placa, apoiada no chão, em que está escrito "Você é livre para fazer suas escolhas, mas não é livre para escolher as consequências".

A igreja, que pertence à Congregação Batista Bíblica Salém, foi denunciada ao Ministério Público da Bahia, por conta da mensagem endossada pelo pastor. Segundo a promotora e coordenadora do Centro de Apoio aos Direitos Humanos do MP-BA, Márcia Teixeira, será feita apuração do caso, a fim de se analisar a possibilidade de uma abertura de inquérito civil contra a instituição.

A promotora afirma que estimular a violência é um crime previsto no Código Penal (Artigo 286), apesar de o pastor Milton França insistir que "não tem lei que tire essa placa daí".

O posicionamento do pastor mostra como líderes religiosos usam os ensinamentos bíblicos de maneira desonesta para justificar suas atitudes discriminatórias. Os recortes e as interpretações direcionadas, supervalorizando determinados trechos, servem a esses fundamentalistas como formas eficientes de controle dos fieis.
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Uma busca na internet pelo trecho copiado pelo pastor Milton França, oferece uma outra tradução, de significado semelhante:
Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles.Levítico 20:13-13 
O livro do Levítico tem um contexto bastante específico, por relatar o sistema de leis que Moisés transmitiu ao povo de Israel, tendo as recebido de Deus. Nele constam sacrifícios, ofertas, pecados, regras morais, comportamentais e de alimentação, religiosas e festivas que governariam o povo. Sendo assim, normas como reservar os sábados, não consumir nenhuma comida que tenha sido guardada há três dias ou mais, não oprimir, não roubar, não mentir, não guardar ira contra o próximo, não misturar sementes ao semear, não usar roupas com tecidos misturados, não praticar adultério e assim por diante.

É importante levar em consideração que A Bíblia, como texto, foi produzida em um determinado período e não está isenta de um contexto. Soma-se a isso a questão linguística: ela foi escrita em três idiomas diferentes, aramaico, hebraico e grego, tendo ainda vocábulos emprestados do latim. Segundo o Reverendo Márcio Retamero (no documentário "Bíblia e homossexualidade: exegese e hermenêutica", de 2012), o Antigo Testamento foi escrito em hebraico e o Novo Testamento em grego, sendo que a geração de Santo Agostinho fazia a leitura da Bíblia em grego – idioma no qual o próprio Agostinho revelou em seus textos ter dificuldade. Foi Agostinho, especificamente, quem passou a associar o termo "sodomita" a indivíduos que praticassem atos sexuais "não naturais" (além do sexo anal, isso incluiria também sexo oral ou qualquer outro ato que não fosse a penetração "tradicional").

O fundamentalismo religioso, linha de pensamento seguida por muitas igrejas evangélicas no Brasil, é um fenômeno recente, da segunda metade do século XX, que emergiu nos Estados Unidos em reação ao método histórico-crítico de leitura da Bíblia. A proposta de retorno aos fundamentos das escrituras fundamenta-se em uma leitura literal, contudo, essa interpretação parece só se aplicar a trechos deliberadamente escolhidos, ao passo que outras passagens são analisadas de maneira contextual.

Fundamentalistas, por exemplo, falam literalmente da condenação à homossexualidade citada em Levítico, mas não fazem a mesma interpretação literal para o impedimento de se aparar a barba, o consumo de carne de porco, o apedrejamento à mulher que engravida antes do casamento, entre outras coisas expressas no mesmo livro - muitas delas devendo ser, inclusive, punidas com a morte por apedrejamento.

Curiosamente, o trecho em questão condena o ato entre homens, mas nem sequer menciona mulheres - ou seja, a abominação não se estende às lésbicas. Uma justificativa para o estabelecimento dessa regra em específico, seria o fato de relações sexuais entre homens fazerem parte de rituais pagãos - quando uma mulher não engravidava, ela seria considerada a primeira responsável por sua falta de fertilidade e, como tratamento, deveria manter relações com o sacerdote; no caso de o ritual não funcionar, isso indicaria que o homem, e não a mulher, teria problemas de fertilidade e, por esse motivo, ele então deveria ter uma relação sexual com o sacerdote.

Ministério Público Federal afirma que projeto "Escola Sem Partido" é inconstitucional



A tentativa de cercear a liberdade docente, por meio da restrição de como professores e profissionais da educação devem agir, vem acontecendo já há algum tempo e, no dia 17 de julho, o Senado lançou uma consulta popular através do portal e-Cidadania a respeito do Projeto de Lei 193, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), integrante da bancada evangélica, que inclui o programa que ficou conhecido como "Escola Sem Partido" na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Há ainda um Projeto de Lei tramitando na Câmara, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF), o PL 867/2015.

Em nota técnica, encaminha na sexta-feira, 22 de julho, ao Congresso Nacional, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF), aponta a inconstitucionalidade do Projeto 867/2015.

Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão e redatora da nota, escreveu que o projeto "nasce marcado pela inconstitucionalidade", justificando que o artigo 205 da Constituição Federal coloca, como objetivo primeiro da educação, o pleno desenvolvimento das pessoas e a sua capacitação para o exercício da cidadania - o que envolveria a abordagem de temas socioculturais, do respeito às diferenças e o estímulo à participação ativa na promoção de melhoras para a sociedade de maneira geral. "Essa ordem de ideias não é fortuita. Ela se insere na virada paradigmática produzida pela Constituição de 1988, de que a atuação do Estado pauta-se por uma concepção plural da sociedade nacional. Apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, e esta só é possível se se assegura a cada qual sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida", afirmou Duprat.

A nota argumenta ainda que o Escola sem Partido coloca o professor "sob constante vigilância, principalmente para evitar que afronte as convicções morais dos pais", além de confundir a educação escolar com aquela que é dada pelos pais, misturando o público e o privado de forma danosa.

À primeira vista, o projeto dá a impressão de se tratar de uma busca por melhoras no sistema educacional, de forma a impedir uma doutrinação ideológica em sala de aula, algo bastante válido se encararmos a proposta isoladamente. Contudo, o texto contém uma série de incoerências que ficam ainda mais evidentes quando levamos em conta o posicionamento dos defensores da chamada "Escola Sem Partido".

Um grande problema, que o movimento em questão ignora, está no fato de muitos políticos o defenderem justamente para fazer valer seu próprio viés ideológico.

De acordo com o PL 867/2015, ficaria estabelecido que:

Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:
I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;
III - liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;
IV - liberdade de crença;
V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.
A noção de neutralidade é, de fato, interessante, no entanto, o texto ignora completamente que algumas discussões ideológicas são necessárias para a formação crítica do pensamento e que, para fomentar o debate e estimular o aluno a formar sua própria opinião acerca de um assunto é preciso ensinar a respeito de correntes ideológicas e crenças - afinal, a única maneira de o indivíduo se posicionar contra uma linha de pensamento é conhecendo o que é pregado por ela.

Ademais, a abordagem de questões importantes como a desigualdade de gêneros, a homofobia, o racismo e o que leva às discrepâncias entre classes sociais e econômicas tem sido encarada como "doutrinação" a partir de uma distorção deliberada dos discursos de educadores e estudiosos desses temas.

Ainda conforme o projeto, o professor:
I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária;
II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
IV - ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;
V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;
VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
Ora, se ao professor cabe apresentar "as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes", é necessário que ele aborde a necessidade, por exemplo, de trabalhadores participarem de manifestações e procurarem sindicatos para que tenham seus direitos garantidos.

É perigoso também que não haja uma delimitação precisa, no projeto, do limite entre expressão de opiniões e a tal doutrinação, o que pode levar um professor a ser legalmente processado simplesmente por divergir de um ponto de vista e expor seus argumentos em sala de aula, o que é bastante diferente de apresentar fatos de maneira parcial.

O projeto trata ainda do respeito às convicções dos pais dos alunos sem, contudo, estabelecer parâmetros que reconheçam a capacidade do educador a partir de sua formação. Para que os pais se oponham à ação do professor, eles precisam compreender o processo pedagógico e as motivações, já explicadas, do motivo de certos assuntos serem abordados em sala de aula.

Porém, o que temos visto com bastante frequência são pais que, sem acompanharem a vida escolar dos filhos, apenas procuram intervir quando lhes parece conveniente - e, sabemos, para os pais é bastante conveniente que seus próprios filhos não questionem suas crenças, algo que os jovens são capazes de fazer independentemente da função do professor, que acaba levando a "culpa" por dar ao filho um instrumento poderoso que é a argumentação.

Em maio, o MEC já havia se posicionado contra essa movimentação que tem acontecido para se controlar o ensino, mas uma reunião recente entre o presidente interino Michel Temer e uma comitiva de pastores levou o governante a se comprometer com a revisão da atuação do MEC, mostrando-se favorável a essa grupo que procura basear a educação em seus preceitos religiosos e moralistas.